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Racismo: política, poder e dominação

Carlos Augusto Sant’Anna Guimarães

Comumente, o racismo expressa-se por um não gostar do outro de raça distinta. Evoca separação, distância e ojeriza. Nos casos extremos, justificativas para a segregação, alcançando o extermínio físico dos fenotipicamente diferentes.

 

Ainda segundo o senso comum, haveria sociedades mais racistas do que outras. Eis aqui um truque da política que serve para encobrir sistemas de dominação: uma ilusão social, que conforta moralmente os perpetradores de microviolências cotidianas ou mesmo indigência intelectual de quem olha, mas não as vê, ou quando o faz é sob os olhos de Pollyanna. Frantz Fanon, no seu livro “Pele negra, máscaras brancas”, nos ensina que não existem sociedades mais ou menos racistas que outras. Elas são ou não racistas. Nesse sentido, é um equívoco acreditar que o Brasil seja menos racista que os Estados Unidos e este, que a África do Sul. Na realidade, o racismo ou racismos manifestam-se seguindo as particularidades e singularidades de cada formação social.

O racismo, na maioria das vezes, é qualificado como uma ideologia de grupos extremistas. No passado, os racistas eram os partidários do nazismo alemão; os membros da Ku Klux Klan, nos Estados Unidos; e os defensores do Apartheid, na África do Sul. Atualmente, são os partidários do neonazismo, na Europa e em outras partes do planeta, como, inclusive, no Brasil. Será que o racismo é apenas uma ideologia de grupos extremistas ou um fenômeno mais amplo do ponto de vista social e político e, historicamente, mais duradouro?

O termo racismo, embora formulado no entre guerras, remete-nos, sem risco de anacronismo, à fundação da era moderna e da modernidade capitalista, fruto dos processos de expansão europeia e conquista das terras d’além-mar, simbolizada quando Cristóvão Colombo, na sua viagem para a Índia, esbarra com a Ilha de Santo Domingo, em 1492. A partir daquele momento, o Atlântico Sul transformar-se-ia em um rio com três margens: África, América e Europa, no qual um comércio altamente lucrativo de almas negras se estabeleceu: a escravidão capitalista moderna.

Nesse canto do mundo, em nome de Deus e do capital, os europeus produziram o extermínio de povos originários, escravização de africanos, extração de riquezas naturais (animal, mineral e vegetal) e deslocamentos forçados de populações asiáticas (indianos e chineses) – os “coolies”. Para uma leitura mais aprofundada sobre a presença chinesa e indiana nas Américas, Antilhas e Caribe, há textos acadêmicos em português.

Na primeira fase da conquista, a diferença inicial entre os povos caracterizava-se por serem cristãos ou pagãos. Rapidamente, evoluiria para as características físicas, na qual a cor da pele e dos olhos, além do tipo de cabelo, assumem as distinções mais notáveis, dividindo os povos entre conquistadores e conquistados. Os brancos na categoria dos primeiros, e os não-brancos entre os segundos. De conquistados a escravizáveis e escravizados, foi um passo.

“São eles homens de verdade?”, essa era a questão posta na famosa controvérsia de Valladolid entre o historiador eclesiástico Juan Ginés de Sepúlveda e o frei Bartolomé de Las Casas, em 1550/51. Seriam eles descendentes de Adão? O reconhecimento da humanidade das populações originárias das Américas não implicou equidade de direitos e/ou respeito às culturas e crenças, mas uma hierarquização entre os tipos humanos.

No caso dos africanos, a justificação para a escravidão encontrava-se nas Escrituras Sagradas, na história bíblica da maldição que Noé lançou sobre seu filho Cam e toda a sua descendência (os africanos) de que seriam servos de Sem e Jafé. O racismo moderno assentava-se em uma interpretação religiosa. A figura de Cam será retomada no Brasil, no final do século XIX, dessa vez não como maldição, mas uma dádiva, expressa na tela “A Redenção de Cam”, de Modesto Brocos, pintada em 1895, em referência ao processo de branqueamento da população brasileira. Recentemente, um pastor evangélico e deputado federal evocou a maldição de Cam para justificar as desigualdades sócio-raciais brasileiras.

A proto-ideia de raça é, portanto, uma invenção moderna, anterior à classificação naturalista, biológica. Essa perspectiva surgiria no final do século XVII, consolidando-se no século seguinte, com critérios classificatórios e hierárquicos elaborados pelos cientistas naturalistas, refletindo o enquadramento religioso e ideológico firmado, corroborando e solidificando a visão teológica da existência de uma linha evolutiva da humanidade que partia do ser mais primitivo (africano) ao ser superior (europeu).

No século XVIII, o debate desloca-se de lugar. Deixa o berço religioso e aloja-se no campo filosófico-científico, dividindo-se em dois polos: monogenista e poligenista. A questão entre os iluministas dizia respeito se a espécie humana teria uma origem comum ou descenderia de troncos diferentes. Diderot advogava a primeira teoria, enquanto Voltaire era adepto da segunda. Para os monogenistas, as diferenças raciais seriam produtos do meio em que vivem (clima, regime alimentar e hábitos), ou seja, os diferentes tipos humanos são resultados da natureza. A ideia de raça assentava-se no fenótipo, sendo a cor da pele, dos olhos e dos cabelos seus principais marcadores.

É importante chamar a atenção para o fato de que os pensadores iluministas, tão ciosos da questão da liberdade, não se dedicaram a refletir sobre a escravidão negra. No seu livroHegel e o Haiti, Susan Buck-Moss revela a ausência do tema da escravidão nos autores da filosofia política ocidental. Ao mesmo tempo, tomamos conhecimento que no final do século XVII era moda, na Inglaterra, as damas da aristocracia serem retratadas acompanhadas por africanos escravizados como se fossem animais de estimação. No livro, a autora apresenta variadas telas, nas quais os negros compõem a cena ao lado - em posição subalterna - de uma Lady. Em outras palavras, a utilização de africanos escravizados não estava circunscrita às colônias, muitos foram levados às cortes europeias. Ou seja, a ausência da escravidão nos textos dos pensadores liberais não pode ter como argumento o desconhecimento do empreendimento colonial. A autora lembra ainda que, no século XVIII, a escravidão era um recurso metafórico bastante utilizado na filosofia política, para conotar os aspectos perniciosos nas relações de poder, sendo a liberdade a sua antítese. Mas a escravidão aludida era a dos judeus nos tempos bíblicos.

Os avanços científicos da época impulsionaram as ideias poligenistas. A monogenia foi associada a uma visão religiosa, portanto incompatível com o pensamento laico e científico, que procurava se libertar das amarras de natureza teológica. Carl Linnaeus, talvez o mais famoso dos naturalistas do século XVIII, elaborou a primeira taxonomia humana, na qual os tipos raciais corresponderiam não apenas a um continente específico, mas também a destoantes graus de desenvolvimento civilizatório. Os europeus (brancos) ocupariam o topo da cadeia, seguido por asiáticos (amarelos), americanos (vermelhos) e africanos (negros). No final desse século, a ideia de raça fixa-se como explicação biológica para as diferenças culturais, e estas como decorrentes daquelas. Estabelece-se a relação entre raça, território e costumes. Cada continente corresponderia a uma raça, com estágios de desenvolvimento econômico, cultural e político distintos; naturalmente desiguais.

O iluminismo e naturalismo fincaram os alicerces do racialismo ou raciologia – estudo das raças humanas -, que se firmaria no século seguinte sob a hegemonia da perspectiva poligenista, isto é, as raças teriam origens distintas. O termo raça foi introduzido no jargão acadêmico-científico nos anos de 1800. Das características físicas (naturais), derivavam atributos psicológicos, estéticos, intelectuais e morais, dessemelhantes imutáveis e transmitidos hereditariamente não apenas os traços físicos, mas também os predicados subjetivos e morais.

No século XIX, as ideias de desigualdade das raças humanas e o determinismo racial tornam-se hegemônicos e popularizam-se. Associada à perspectiva biológica, o darwinismo social forja o pensamento não apenas de raças inferiores, mas, incivilizáveis. Em outras palavras, com exceção da raça branca, os demais tipos raciais estavam condenados ao atraso socioeconômico, cabendo ao homem branco a tarefa de civilizar os povos não-brancos: o fardo do homem branco.

Teremos uma profusão de teorias explicativas sobre a inferioridade das raças não-brancas, originadas das leis da natureza e da biologia. Teorias como frenologia e antropometria – estudos sobre a inteligência e também sobre aspectos morais e estéticos, a partir do tamanho e proporção dos cérebros, bem como o formato dos crânios e do índice cefálico. A antropologia surge do ventre das ciências naturais. Um dos seus ramos foi a antropologia criminal e sua associação entre raça e criminalidade, da qual Cesare Lombroso é o principal nome. No Brasil, o médico Raimundo de Nina Rodrigues é a figura mais fortemente vinculada ao pensamento de Lombroso. Lilia Schwarcz, em “O espetáculo das raças”, esquadrinha teorias raciais, cientistas, além da formação e ideários institucionais acerca da questão racial, no período de 1870 a 1930.

O fato é que a questão racial sempre esteve no horizonte das elites nacionais no processo de “nation-state building”, no Brasil e no continente americano. A formação racial ocupava (ou ocupa) o centro dos debates referentes ao destino da nação. Parafraseando Karl Marx e Friedrich Engels, um espectro ronda as Américas, o espectro da raça negra. 

Na década de 1880, o britânico Francis Galton, a partir da leitura do livro de Charles Darwin, “A Origem das Espécies” e sua teoria da evolução, formulou as bases da eugenia, que rapidamente se transformou em um movimento científico e social transnacional, gozando de grande prestígio na Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos, França e Itália, mas não apenas nesses países. Na época, foi recepcionado com entusiasmo no Brasil e na América Latina. Hoje em dia vinculada ao nazismo alemão, a eugenia foi durante muito tempo um ramo da ciência bastante reconhecido, servindo como um guia orientador de reformas sociais nas áreas de saúde e educação em diversos países.

A primeira sociedade eugênica brasileira foi fundada no ano de 1918, na cidade de São Paulo. O primeiro congresso brasileiro deu-se em 1929. Longe de ser um movimento homogêneo e compacto, era formado por correntes distintas de pensamento. Em linhas gerais, havia duas correntes principais: a neolamarckiana, dita como suave; e a mendeliana, chamada pesada. Na realidade, essa divisão escondia outros matizes, tanto de natureza científica quanto ideológica.

Os mendelianos, por exemplo, defendiam medidas duras de controle racial, tais como testes pré-nupciais e proibição de casamentos inter-raciais, por serem contrários à miscigenação, pois conduziria, necessária e obrigatoriamente, à degeneração. Havia ainda aqueles que defendiam a eliminação física das raças vistas como inferiores e dos detentores de deficiências físicas e doenças mentais. Os neo-lamarckianos, por sua vez, defendiam uma atenção pré e neonatal, uma saúde e higiene públicas, bem como a preocupação com a psicologia. Acreditavam que os cuidados com a forma física melhorariam progressivamente a conformação eugênica de uma população.

Essa divisão escondia outros matizes, tanto de natureza científica quanto ideológica. A recepção entusiasmada das ideias eugênicas não se deu de maneira acrítica e irrefletida, mas como parte do debate acerca dos destinos do país. O fator racial (leia-se as raças não-brancas), dada a hegemonia do determinismo racial, era uma das preocupações das elites intelectuais e dirigentes. A partir da década de 1870, começa a se desenhar uma linha de estudos e pesquisas cuja preocupação central será sobre a população africana e seus descendentes no Brasil, configurando-se uma tradição de estudos sobre o negro, que constituiu um dos alicerces das ciências sociais brasileiras.

Um dos poucos que se insurgiram, de forma veemente, contra a eugenia e sua perspectiva de superioridade racial e também criticou o darwinismo social foi o médico e cientista social Manoel Bonfim, qualificando-a de pseudociência, no seu livro “A América Latina: Males de Origem”. Ronaldo Conde Aguiar, além de nos brindar com uma biografia sociológica do pensador sergipano, fruto de uma pesquisa criteriosa e bastante cuidadosa, no livro “O rebelde esquecido”, aporta elementos para refletirmos porque Bonfim é um dos proscritos pela tradição do pensamento social brasileiro.

Monteiro Lobato, um entusiasta e admirador da eugenia, amigo dos eugenistas Renato Kehl e Arthur Neiva, defendia que a eugenia era uma forma de consertar o mundo. Escreveu um único romance destinado a adultos, no qual desenvolve as ideias de superioridade racial branca, condena a miscigenação por produzir a degeneração da raça, tal qual o Conde Arthur de Gobineau, e prega o extermínio da população negra.

Antes mesmo de os nazistas ascenderem ao poder na Alemanha e espantar o mundo com o assassinato em massa de milhões de judeus, em 1926 um pretenso livro de ficção científica apregoava o extermínio da raça negra. Nele, o autor desenvolve suas ideias sobre superioridade racial, eugenia e degeneração decorrente da miscigenação. O romance é ambientado nos Estados Unidos, no ano de 2228, quando, em decorrência da divisão de gênero na população branca, são lançadas duas candidaturas. Os homens brancos desejam a reeleição do presidente Kerlog, enquanto as mulheres brancas apoiam a feminista Evelyn Astor. A clivagem de gênero favorece o candidato negro Jim Roy, que é eleito o 88° presidente dos Estados Unidos da América.

O dissabor da derrota faz com que o presidente Kerlog conceba a “solução final” para o problema negro. A solução consistia na esterilização de cem milhões de pessoas negras (esse era o contingente populacional negro no romance). O plano é posto em execução, e o seu sucesso conduz à reeleição do presidente Kerlog. E, assim, a vida na América é reconduzida à normalidade. A raça branca se reunifica e segue seu curso como raça dominante, agora única nos Estados Unidos.

O escritor brasileiro Monteiro Lobato é sempre lembrado pelas obras infantis como o “Sítio do Pica-Pau Amarelo”, mas enveredou também pelos caminhos do racismo. Seu livro “O Presidente Negro” fora rejeitado por cinco editores e jamais foi lançado no mercado editorial norte-americano. Lobato imaginava que ganharia muitos dólares na terra do Tio Sam, das leis de separação racial e da Ku Klux Klan, todavia não logrou sucesso. No Brasil, o livro recebeu inúmeras edições. Na 13ª, de 1979 (Editora Brasiliense), o editor afirma que se trata de uma “brincadeira de talento”, concluindo que talvez Monteiro Lobato “não tenha imaginado coisas, e sim apenas antecipado coisas”. O que chama a atenção é que esse e outros livros de Lobato, que exalam pregações racistas, nunca foram alvos de repreensão social por parte da opinião pública nacional. Pelo contrário, quando o Conselho Nacional de Educação emitiu um parecer em que sugeria a inclusão de uma nota explicativa sobre a forma ofensiva com que a personagem tia Anastácia era retratada no livro “Caçadas de Pedrinho”, houve uma enxurrada de críticas e acusações de censura à obra literária.

A imprensa não noticiou que a nota explicativa do racismo presente no livro foi motivada por um pedido de uma outra nota explicativa demandada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), referente às onças, alvo das caçadas daquele personagem (sobre a polêmica).

 

Na realidade, a literatura de Monteiro Lobato contém várias passagens racistas, não se limitando ao romance “O Presidente Negro”. Para o escritor paulista, a literatura era uma forma de vulgarizar as ideias eugênicas, logo racistas.

Como repete um personagem da peça “Bonitinha, mas Ordinária”, de Nelson Rodrigues, “o mineiro só é solidário no câncer”, frase atribuída a Otto Lara Resende, embora esse bom mineiro nunca reconheceu a autoria. O fato é que, quando o assunto é o racismo à brasileira, a falta de solidariedade não afeta tão somente os mineiros, inclui paranaenses, paulistas, paraibanos, pernambucanos, cearenses, enfim, brasileiros. O livro, “O Presidente Negro”, foi relançado em 2008, numa tentativa de marketing de catapultar vendas por conta da eleição de Barack Obama, presidente dos Estados Unidos. Faz-se necessário destacar que a eugenia não era popular apenas entre cientistas médicos e antropólogos, mas também entre os reformadores sociais que atuaram em áreas como a da educação pública desde os anos de 1920-40. Líderes eugenistas ocuparam cargos de relevo na estrutura burocrática estatal, ajudando a estruturar as áreas da saúde e da educação segundo os seus ideais políticos, filosóficos e científicos.

Dois livros abordam a história da eugenia no Brasil. “A hora da eugenia”, de Nancy Stepan, e “Diploma de brancura”, de Jerry Dávilla. Ambos os autores demonstram como as ideias eugênicas influenciaram o pensamento científico social e as políticas públicas, presidindo a conformação das áreas de saúde e educação públicas, no período de 1917-1945. Dávilla vai mais além e aponta resquícios dessa orientação na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira de 1996.

Simultaneamente ao avanço dos cientistas e reformadores sociais eugenistas nos órgãos de Estado, sobretudo nas áreas de educação e saúde pública, ganhava vulto uma nova interpretação do Brasil que valorizava a miscigenação racial. No ano de 1933, Gilberto Freyre publica sua célebre obra “Casa Grande e Senzala”, na qual oferece uma interpretação inovadora para o Brasil e onde a ideia de mestiçagem de raças e cultura ganha um valor positivo. A explicação para as desigualdades raciais e as dificuldades de ascensão social da população negra e mestiça indicava a proximidade temporal com a escravidão. A interpretação oferecida por Freyre, em que pese à avalanche de estudos e pesquisas, tanto históricos quanto sociológicos e econômicos, assentados em magníficos bancos de dados do IBGE e fazendo uso de estatística sofisticada, não apenas sobreviveu, como também permanece em voga. Isso pôde ser observado no debate recente sobre a adoção do sistema de cotas para negros e indígenas como um dos critérios de acesso ao ensino superior, os chamados “neofreyrianos” e seu “antirracialismo”.

Recuando no tempo e se deslocando para a América do Norte, encontramos o pensador francês Alexis de Tocqueville e seu livro “A Democracia na América”, de 1835, no qual manifestou inquietação quanto ao futuro da democracia nos Estados Unidos após a abolição da escravidão. Para ele, o fim do trabalho escravo não implicaria melhoria da vida dos ex-cativos. Pelo contrário, o preconceito e a desigualdade aumentariam, na medida em que os negros conquistassem a liberdade. Tocqueville identificou dois caminhos potenciais para o tema: a mistura de raças ou a segregação racial. Ele não incluiu a população indígena, porque acreditava que o seu destino seria o extermínio.

Chama a atenção que, apesar de o arguto pensador francês reconhecer a existência do preconceito antinegro e práticas de discriminação racial, com tendência a se intensificar no futuro com o fim da escravidão, ele nunca contestou nem qualidade nem os valores e mecanismos da democracia norte-americana. Uma pergunta fica no ar, uma vez que, sendo Tocqueville um europeu de linhagem nobre, compartilhava o ideário de superioridade racial, do qual derivava a ideia sobre a incapacidade das raças não-brancas de civilizarem-se. Estariam condenadas ao atraso devido às suas limitações intelectuais e morais? Eis um tema para pesquisa destinado àqueles que se interessam pelo pensamento político clássico.

O pensador francês também nos ajuda a desmontar a narrativa do racismo como meramente decorrente da experiência da escravidão, ao traçar as diferenças da escravidão entre antigos e entre os modernos. Entre os primeiros, a condição de escravo independia da sua origem étnico-racial, mas resultava de dívida ou guerra. Liberto, o ex-cativo não era mais vinculado à sua antiga condição social, o mesmo se aplicando à sua linhagem. Logo, a referência descendente de escravo não era evocada, pois não era possível identificar quem na população havia sido escravo. Interessante observar, como faz Gislene dos Santos emA invenção do ‘ser negro’”, que José Bonifácio recorre à mesma analogia de Tocqueville. E acrescenta que, entre os antigos, escravos e senhores eram da mesma cor e origem e iguais em civilização. 

Os modernos inovaram em dois aspectos: transformaram a escravidão em um comércio altamente lucrativo e longevo (mais de 350 anos) e limitaram-na aos africanos de tez escura (tanto no Brasil quanto nos demais países da América Latina houve escravização da população indígena, todavia não se tornou um comércio transnacional). Dessa maneira, os afrodescendentes na diáspora e os próprios africanos em África carregam nos seus corpos a marca da experiência da escravidão, mesmo que os segundos não tenham sido submetidos àquela condição. Achille Mbembe, em “Crítica da Razão Negra”, repisa a questão ao acrescentar a distinção entre processos de colonização, aos quais os africanos foram submetidos após a Conferência de Berlim (1884-85), dos processos  de escravização.

A narrativa da escravidão como justificativa para as atuais desigualdades sociais entre brancos e não-brancos sustenta-se em marcadores fenotípicos. Dessa maneira, mantém ativas e, ao mesmo tempo, imaginam que escondidas, as peças e engrenagens da reprodução de crenças e valores sobre as populações não-brancas como formada por indivíduos de má índole, patologicamente perversos e perigosos, ignóbeis, enfim, ontologicamente inferiores. Justifica-se, assim, a montagem de aparatos estatais de vigilância, controle e segurança, bem como políticas restritivas de imigração, emprego, educação e saúde, entre outras.

A partir da década de 1930 e, posteriormente, impulsionada pelos resultados das pesquisas financiadas pela UNESCO, nos anos de 1950, prosperou na sociedade brasileira a crença sociológica de que a raça, ou qualquer aspecto racial, perderia relevância na sociedade brasileira por conta do processo de modernização, em função do desenvolvimento capitalista. Eis que, para a decepção de todos, por diferentes razões, nenhuma das previsões se efetivou.

No debate recente sobre políticas públicas de combate ao racismo, os autointitulados antirracialistas resgataram a Declaração da Unesco sobre a questão da     raça, que advoga a sua inexistência do ponto de vista biológico. Esquecem ou desconhecem que a ideia de raça não nasceu no berço da biologia. Longe disso, elas são filhas diletas do racismo. A Declaração da Unesco de 1950, referindo-se à inexistência das raças – motivada pelas atrocidades praticadas contra os judeus na Segunda Guerra Mundial - não arranhou a consolidação do Apartheid, na África do Sul; não desestabilizou o regime do Jim Crow Law, nos Estados Unidos; e não contribuiu para a redução das desigualdades sociais e econômicas entre brancos e não-brancos nos países da América Latina. Parece que a defesa antirracialista contra a ideia de raça surge justamente quando as lutas igualitárias avançam no campo das políticas públicas.

Antes da experiência nazista de extermínio dos judeus, o mundo teve notícia das atrocidades do Rei Leopoldo II, da Bélgica, que foi responsável pela matança de pelo menos 10 milhões de africanos entre 1865 a 1909, deixando outros tantos, quando o Congo era sua propriedade particular. No entanto, raramente se leem relatos históricos ou se assistem a documentários sobre o genocídio congolês. Muitas explanações acerca do fenômeno do racismo enfatizaram aspectos psicológicos com a inclinação à “personalidade autoritária”, uma expressão de uma psicopatologia resultante de fatos ocorridos na infância. Outras exploraram como derivado de tensões e frustrações sociais e a busca de “bodes expiatórios”. Tais teorias, surgidas no século XX para explicar o fenômeno, limitavam-se ao contexto europeu, não dando conta de aspectos institucionais e estruturais do racismo como uma ocorrência em escala global, com origens remotas e de longa duração.

Sem dúvida ou retoque, o racismo assume diferentes formas, variando segundo a formação histórica, racial e política de uma dada sociedade. Em alguns casos, sua apreensão dá-se de maneira objetiva e direta, como, por exemplo, a legislação restritiva à mobilidade dos grupos raciais dominados e privilégios raciais ao grupo dominante. Noutras situações, o cenário apresenta-se de maneira turva e repleta de sinuosidades discursivas, no qual determinadas palavras são evitadas, quase interditas, mas as que grita a plenos pulmões, quer seja na forma de um silêncio ensurdecedor, quer seja na forma tumultuosa e barulhenta dos movimentos sociais de denúncia do racismo. No entanto, nem é notado nem tem sua existência reconhecida como uma problemática de natureza político-social, expressa muitas vezes na ausência de corpos e narrativas negras nos espaços de poder e de fruição dos bens e benefícios proporcionados pelo progresso econômico e social produzido pela sociedade.

No final dos anos de 1960, dois ativistas do Movimento Negro norte-americano, Stokely Carmichael e Charles Hamilton, formularam o conceito de racismo institucional para explicar que comportamentos racistas vão muito além de atos individuais e diretos. Muitas vezes se apresentam de maneira não declarada, mas em ações, atos e medidas administrativas rotineiras, que, a um primeiro olhar, podem ser distanciados da prática de discriminação e preconceito raciais, quer seja de maneira consciente ou não. O racismo institucional se manifesta de variadas formas, como no atendimento médico diferenciado, na segregação residencial e na supervalorização da brancura, entre outras formas. O termo forneceu as bases para que o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) concebesse o Programa de Combate ao Racismo Institucional (PCRI), cujo objetivo era identificar as formas de como o racismo integra a cultura das instituições públicas, produzindo serviços diferenciados, e muitas vezes inadequados, segundo a cor, origem étnico-racial e/ou cultura dos cidadãos.

Sem desconsiderar a contribuição seminal da ideia de racismo institucional para a compreensão do fenômeno para além das questões de natureza psicossociais, das críticas às suas insuficiências, despontaram explanações estruturais. Segundo elas, o racismo não moldaria apenas o funcionamento das instituições, que, por meio de um suposto universalismo de procedimentos aparentemente impessoais e meritocráticos, ocultam práticas racistas conscientes e/ou inconscientes. Por conseguinte, estaria nos próprios alicerces da estruturação do Estado-nação moderno.

O conceito de racismo estrutural consegue pôr em causa a própria concepção de contrato social, conforme formulado pelos filósofos contratualistas Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau, nos séculos XVII e XVIII. Traz a lume as limitações e cerceamentos das ideias filosóficas que sustentam não somente as ideias liberais, mas também parte da chamada teoria crítica.

Quando Alexis de Tocqueville e Raymond Aron assinalam que uma sociedade é mais democrática na medida em que cessam as distinções e privilégios de ordens e de classes transmitidos hereditariamente, será que eles incluem o racismo como elemento comprometedor da qualidade da democracia? A mesma ausência é vista     entre os iluministas franceses em relação à escravidão e, em particular, à Revolução Haitiana de 1791, a única experiência histórica a cumprir na sua totalidade e integridade os princípios da Revolução Francesa, e o silêncio quanto à tentativa frustrada de reestabelecer a escravidão na então possessão francesa de Saint-Domingue, que acarretou a derrota das tropas napoleônicas, em 1803. A história do Haiti, fato singular na memória da humanidade, narra, excepcionalmente, que uma revolução de escravizados triunfou frente ao exército de uma potência imperial sem ajuda de terceiros. Mas o preço de tamanha audácia seria alto e duradouro, o que explica o isolamento e a pobreza do Haiti.

Nas últimas quatro décadas, um importante aporte teórico ao debate sobre o racismo vem sendo dado pelas feministas negras, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, a exemplos de Angela Davis, Bell Hooks, Kimberlé Crenshaw e Patrícia Hill Collins, no caso do primeiro, e, do lado brasileiro, destaque para Lélia Gonzalez, Luíza Bairros e Sueli Carneiro. Essas mulheres negras vão chamar a atenção para a interseção entre as categorias de gênero, raça, classe e sexualidade que estão umbilicalmente entrelaçadas na produção da opressão e dominação capitalista, machista e racista. Hill Collins sistematiza essas contribuições na abordagem da interseccionalidade, uma perspectiva teórica e metodológica que procura dar conta dos múltiplos marcadores sociais que operam simultaneamente na opressão, dominação e discriminação de identidades sociais subalternizadas.

Em comum, essas autoras propugnam um feminismo antirracista e classista. Seus escritos tensionam, por um lado, o feminismo branco e de classe média, e por outro, o machismo e sexismo não só dos homens brancos. Também questionam a centralidade da ideia de classe e da luta de classe como motor da história, a qual todas as demais formas de opressão e dominação estariam subsumidas.

Será que a proximidade física entre membros de grupos raciais distintos pode ser um indicador de “menos racismo” ou, dito de maneira mais adequada, sinônimo de relações sociais menos assimétricas? No Brasil, é comum o recurso de evocar a amizade com pessoas negras ou mesmo um grau de parentesco (primo) para se dizer não-racista, ou mesmo de que não são brancos na acepção do termo. O fato é que a miscigenação não livra nenhuma sociedade do racismo, pois este representa, fundamentalmente, relações de poder e dominação.

A narrativa da escravidão como explicação para as desigualdades atuais minimiza, quando não, esconde o real motor das desigualdades: o racismo antinegro. Ao mesmo tempo, inviabiliza a sua superação. Assim, ao invés da tentativa de reavivar a velha, surrada e rejeitada expressão “democracia racial”, como insistem alguns, o que se exige é a construção de uma República pós-racial, na qual privilégios raciais, étnicos, de origem regional, de gênero e classe sejam superados, para que possam florescer as qualidades individuais. Uma sociedade efetivamente moderna, na qual as qualidades adquiridas prevaleçam em relação às características herdadas. No entanto, a destruição das hierarquias raciais coloca a necessidade de que se promovam os grupos racializados.

Mudar o eixo da política racial implica trazer a raça para o centro do debate e das políticas públicas, para demonstrar como ela opera na deformação da sociedade, na desumanização dos racializados, na interrupção de sonhos, desperdício de talentos e inteligências e no descarte de vidas humanas.

Na atual quadra histórica, a ultradireita tem dado sinais de força em diferentes países (Hungria, Estados Unidos, Grã-Bretanha, Colômbia, Argentina e Brasil). Muito desse avanço tem sido possibilitado pelo uso intenso das novas tecnologias da informação, vide as redes sociais, criadas com a popularização da internet (Facebook, Twitter e WhatsApp, entre outros). Sob um discurso verdadeiramente vitimista, o homem branco heterossexual, “açoitado” pelas conquistas de direitos das mulheres, negros, povos indígenas, homossexuais e transexuais, reclama e exige o seu lugar soberano de poder de volta. Apresenta-se como vítima do progresso humano em direção a uma sociedade menos desigual e mais democrática. Parece que só cederá os anéis de uma mão quando não mais restarem os dedos da outra.

Cem anos após a pandemia provocada pela gripe espanhola, o mundo volta a experimentar outra situação semelhante: a pandemia do novo coronavírus, com mais de um milhão de mortes pelo mundo. No Brasil, mais de uma centena de milhares de vidas ceifadas. A pandemia escancarou todos os tipos de desigualdades (classe, gênero, raça, local de moradia, entre outras). Estudos apontam que a letalidade do COVID-19 é muito maior na população negra. O racismo estrutural e a atualização das ideias eugênicas no imaginário político e social, animados com declarações de autoridades públicas - “imunidade do rebanho” e de que os fortes sobreviveram - associadas à inação governamental como modo de gestão da crise, ajudaram a agravar o quadro que se anunciava complexo e difícil desde o seu início (refletindo as vulnerabilidades à luz do gênero, raça e classe).

 

Sem dúvida, quando se analisa a gestão da crise sanitária pelos governos conservadores, a pandemia do COVID-19 assume contornos dramáticos, com forte traço eugênico. Idosos, pobres, negros, moradores de rua, entre outros grupos socialmente vulneráveis, enfim, os vistos como descartáveis foram deixados ao sabor da roda da fortuna, ou seja, se fortes, sobreviverão (relação entre gestão da pandemia e eugenia). Em 1911, o vaticínio era de que em cem anos, só haveria resquício das populações negra e indígena no Brasil. Contrariando previsões, o censo populacional de 2010 constatou que a maioria da população brasileira se declara negra (soma de pretos e pardos). Esse contingente populacional, em termos absolutos, corresponde à segunda maior população negra do mundo, atrás apenas da Nigéria, na África.

Há uma literatura bastante extensa que aborda o racismo de diferentes perspectivas e nas suas variadas formas de expressão. Segue abaixo uma lista com indicações de leitura, que vai desde livros introdutórios a outros, para aprofundamento sobre o assunto. Trata-se de um tema que assola e assombra a humanidade desde o século XV, com a invasão e conquista da África, Américas e Ásia, e estrutura as relações sociais segundo um padrão determinado pelos europeus conquistadores.

PARA SABER MAIS

AGUIAR, Ronaldo Conde. O Rebelde Esquecido – tempo, vida e obra de Manoel Bonfim. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000.

______. “Sobre a presença de Manuel Bonfim no pensamento social brasileiro no centenário de América Latina: males de origens”. Disponível em: <http://www.achegas.net/numero/31/col_ronaldo_31.pdf>.

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O AUTOR

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Carlos Augusto Sant'Anna Guimarães, cientista político, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco. Entre 2005 a 2011, coordenou coordenou o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da instituição.

COMO CITAR ESSE TEXTO

GUIMARÃES, Carlos Augusto S. Racismo: política, poder e dominação. Coletiva, Recife, n. 28, Coletiva. mai.jun.jul.ago 2020. Disponível em https://www.coletiva.org/dossie-racismo-n28-artigo-politica-poder-e-dominacao.  ISSN 2179-1287.

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