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Deixar cair nas voltas que o tempo dá

Kildery Iara

Meujael Gonzaga
 

INTRO - Essa tentativa de olhar para o que foi feito, e o que mais pede por expressão no agora, se estrutura na forma das próprias criações que são aqui, o motivo dessa escrita-movida. Imagens, fala, mídias, pensamentos inacabados, construindo o terreno onde vamos tentar compartilhar, e no Exercício do compartilhamento, pensar sobre o nosso fazer artístico, sobre a potência de nossos corpos, buscando carregar essa escrita como um corpo/arquivo que no exercício da palavra, revive os movimentos e as fibras musculares que se movem no ato da performance. 

 

K.I.: Eu acredito que o que nos move a trabalhar juntas é um imediatismo das coisas no/do corpo. O gerador da criação geralmente se apresenta como um encantamento ou um trauma. Ver e experimentar o interesse de Meuja entre o autocuidado (como nas residências "corpas líquidas" que articulamos juntas) e autodestruição, foi o que me impulsionou a convidá-la para compor a equipe de “Por onde andam os porcos”. “ os porcos” foi um campo onde podemos revirar nossa prática e entendimento do corpo. Acho que dá para dizer que a gente pensa o corpo como um amontoado transitório de questionamentos e soluções que lida com problemas da sua existência. O corpo como o principal criador de utopias, e que as parindo, por vezes se vê cercado delas (as utopias) contra ele mesmo.

 

M.G. : Ver Iara com o corpo em queda, desarmando todos os mecanismos de defesa, reorganizando as memórias do corpo que dança. Junto com sua carne sendo levada pela gravidade, também vai caindo a técnica, as formas que seu corpo adquiriu em boa parte de sua trajetória profissional. E ao cair vejo um corpo pronto para desordenar, para ressoar tudo que existe entre a vida e a morte, corpo ágil que se move para romper as normas que o meio da dança impõem aos nossos corpos.

 

K.I : Eu acho que o que tu fala aqui sobre  a "técnica que cai” é sobre desviar de uma estética disciplinar, movimentos pré-estabelecidos, a repetição de uma estrutura que não se permite ser modificada.. acho que o teu incômodo é com uma forma que responde à expectativa de uma audiência condicionada né, Meuja?! um dispositivo de captura.

 

M.G : Sim, sempre tive dificuldade com coreografia e com repetição de movimentos que são definidos por outro corpo, e na construção de minhas performances estou sempre buscando romper com essa expectativa, porém sinto uma dificuldade em acessar o espectador e os curadores que fazem a manutenção desse condicionamento. A audiência está cada vez mais enrijecida, a experiência de interação criada entre performer/espectador em “por onde andam os porcos” é um bom exemplo disso. Na MITSP 2020 (mostra internacional de teatro de são Paulo) na falta de galerias brancas disponíveis (que é o espaço ideal para o trabalho) a mostra nos sugeriu um teatro de grande porte.   

O público é colocado dentro do palco na tentativa de romper a parede entre a plateia e as artistas;  no primeiro dia temos coparticipantes que se envolvem completamente com as performers e se movem junto durante todo o espetáculo, criando zonas autônomas temporárias, pessoas caminhando durante as cenas, cruzando o meio do palco, cercando os nossos corpos, enquanto nos movíamos, junto moviam-se vários outros corpos. Situação totalmente oposta ao segundo dia, onde apresentamos com a presença dos curadores, eu arrisco dizer que isso criou uma parede nova dentro do palco, gerando um enorme tensionamento entre os nossos corpos e o deles, uma arena foi criada, e mesmo que os nossos protocolos iniciais demarcasse que tínhamos que romper essa zona de conforto do espectador, foi se tornando uma tarefa quase impossível de realizar, o público parecia estar colado no chão, nem mesmo a iminência de colisão dos nossos corpos em queda e em alta velocidade era suficiente para gerar o deslocamento. É curioso ver essa indisponibilidade justo com uma platéia composta por muitos trabalhadores da arte.

 

K.I. : Sim, isso sinaliza o acordo pré-estabelecido de estar numa caixa cênica, e nossa intenção é de possibilitar que as pessoas circulem pelo espaço como numa exposição. Sinto que quanto mais os protocolos da cena são quebrados, mais essa experiência é possível para a audiência. A criação de “por onde andam os porcos” serviu bem para tentar construir um mapa coreográfico movediço,  existe uma estrutura que aponta qualidades de movimento, velocidade, indica que tipo de presença vai ser construída em determinados momentos, mas o uso desse mapa nunca segue um mesmo percurso, o tempo todo as rotas são alteradas. 

 

Propomos a nós mesmas, através dos atravessamentos que acontecem em cena, o engajamento em estados corporais diferenciados. É pelo conjunto de intensidades construídas pelo corpo sensível que se dá o desenvolvimento desta “cartografia da afetação”, realizada na influência mútua do movedor e do ambiente onde ele está não somente vivenciando a experiência, mas enfatizando e desfrutando do acontecimento. O que estou chamando de “acontecimento” é o que o pedagogo Bondía nomeia de “saber da experiência”, uma interrupção, uma pausa ou desaceleração necessária para a vivência potente do que acontece no presente do presente. Esse modo de existência construído pelos afetos determina que minha função de performer/cartógrafa seja a de dar voz aos afetos que me pedem por expressão.

 

E isso foi um desejo de criação que não partiu só de mim como diretora, mas de toda a equipe. Hugo Coutinho, que assina nossa trilha, felizmente se sente livre para improvisar junto, por exemplo. Acho que o cansaço da repetição e da adequação está presente em todos os âmbitos da vida, e no momento que temos uma suspensão nas mãos, que é a criação de um trabalho artístico, a gente pode escolher repetir isso ou não. 

Hoje em dia, com a parada forçada que a pandemia causou a esse e outros trabalhos, eu olho para os registros dos porcos, e penso que ele pode ser ainda mais aberto. Mas acho que foi/é um passo importante como criadora/diretora/intérprete, eu venho de uma vivência de mais ou menos dez anos dançando em cias que trabalhavam com coreografias rígidas, e que tem a improvisação como um mecanismo que é ativado dentro da estrutura coreográfica para servir de intervalo para um acontecimento “mais importante”(muitas vezes como uma mise en scène), ou como a resolução de um entrave na coreografia, como se a improvisação libertasse a ordenação de passos do compromisso de resolver aquele “problema”. Isso não é um juízo de valor, mas eu fico feliz de ver que a criação com a improvisação reflete as aspirações da vida cotidiana em alguma medida. 

 

M.G. : sim, isso faz a gente sentir que tem sentido fazer o que estamos fazendo...

K.I.: Eu falo de ficar feliz com o que a gente cria ser coerente ou conversar com a vida, porque cada vez mais eu tenho visto como o mercado tem exigido da gente, posicionamentos e diálogos com “a teórica ou teórico da vez”, parece que o  mercado da arte se ’instagramizou”.  E isso se agravou com a experiência da pandemia, como tu tem pensado sobre isso Meuja?

 

M. G: Não só se ‘instagramizou’ como também se ‘uberizou’, por nossa arte ser mediada no momento de suspensão, unicamente de forma virtual, sinto um movimento de virtualização do fazer artístico, nos forçando a informalidade, automatizando, superficializando o nosso fazer, um processo de precarização no pior sentido, retirando ainda mais os direitos do trabalhador da arte, que já são escassos, sempre achei engraçado como ao escrever para os editais buscamos nos adequar a linguagem específica daquele edital, basicamente escrevendo o que eles querem ler, e agora na pandemia isso tem se tornado mais latente, editais emergenciais que exigem exclusividade, que pedem um trabalho pronto antes da seleção ser feita, que o pagamento só acontece meses depois da execução, estamos mais uma vez caindo na armadilha da automatização, que vem desempregando pessoas em todo o mundo, sinto que esses editais pandêmicos cobram uma conta que não bate com a realidade do país, as instituições economizam com custos de estadia, transporte e alimentação dos eventos presenciais e ainda assim diminuem os cachês, sem falar na burocratização que não condiz com o termo ‘emergencial’. Prazos curtos, instagrams como portfólio, me sinto tentando empurrar meu fazer artístico dentro de uma caixa virtual que não cabe, não fecha e acaba se perdendo num mar sujo de plástico que no lugar dos peixes tem algoritmos que ditam o que tem que ser consumido/visualizado. Como tu tem lidado com o  fazer artístico nesses tempos Iara? Fala também da tua pesquisa atual do trabalho ‘Ritual para reescrever o futuro’... 

 

K.I : Abandonar foi um verbo que ecoou bastante em mim, eu compartilho da mesma angústia que você… tenho pensado muito sobre porque eu tenho produzido, para além do óbvio :  “- porque é isso que sei fazer, ué?! ”

 Essa é uma experiência singular sobre criação para muitas de nós:

  • Não ter necessariamente o impulso criativo, mas criar

  • Não ter relação com temáticas específicas, mas tecer links para se aproximar delas

  • Não acreditar na instituição ou na proposta da instituição, mas parir uma obra porque é uma oportunidade de conseguir manutenção

 

Tudo parece ter que ser seguro, pronto, novo, exclusivo. A lógica dessas chamadas remonta uma lógica de mercado que boa parte nós artistas diz não concordar. Eu quero uma possibilidade de apresentar o fracasso e revelar assimetrias a partir disso, mas nesses moldes parece que a gente não pode falhar. A minha estratégia tem sido insistir nas mesmas imagens para seguir criando. Se não estivéssemos em pandemia, agora estaria trabalhando num “solo” novo, então eu tenho feito gambiarras para dar continuidade a ele. Tenho usado os trabalhos com vídeo como um processo de investigação de imagens para o trabalho cênico, tenho experimentado escrever falas em primeira pessoa, e isso de alguma forma tem me ajudado. Esse trabalho que tu citas, teve o título alterado para: “o agora não confabula com a espera”. E sei lá quantos mais ele vai ter.

 

Eu acredito que esse trabalho deriva de outros que estão engavetados mas que nutrem esse momento: “pré-salto” que basicamente se concentra em entender em como desviar dessa “pedagogia da espera” em que a gente vive, onde parece que adiar ações incisivas ou perigosas no aqui-agora, habilita um  “ “futuro melhor”. “ E “Great Fake” que experimenta a partir do corpo, da projeção, relações desejo, entre orgânico-sintético, natureza colonizada, contemplação esgarçada.. entender por que sustentamos o “fake”. Por que que existe piedade seletiva, ou porque a gente fala da natureza como algo que está apartado de nós. Tem inclusive esse nome em inglês que soa bem como um produto embaladinho, colorido, acompanhado de milhares outros iguais a ele.

 

Então tem um pouco desses dois trabalhos, algumas plantas de poder aparecem como uma lembrança de que eu tenho uma ancestralidade à qual posso me conectar, um espaço orgânico-inorgânico que dialoga com o julgo do meu corpo travesti como um corpo “sintético” e tantos outros desdobramentos aí por vir..

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O agora não confabula coma espera, foto: Luiza Andrade (2020)

Esse interesse com o futuro é bem influenciado pela ficção visionária de Jota Mombaça.. só é possível construir o que se imagina né? nesse trabalho eu escrevo cartas para mim mesma em diversas viagens no tempo, como uma forma de assegurar minha existência, entendendo que exercitar a escrita do futuro é garantir a presença no presente, tendo como provocação, a desumanização de um corpo dissidente. Afirmar a presença de um corpo desumanizado, e por isso passível de extermínio, é romper a coreografia dos espaços que supõem sua ausência para funcionarem da forma planejada. 

 A mudança do título apareceu pensando sobre o tempo, nesse tempo agora, esse que não é linear, que fura o tempo de cronos, que é espiralar e produz possibilidades. Tô entendendo que é tudo sobre não esperar.  Mas também tenho pensado muito sobre o centramento na humanidade, a pandemia esfregou na nossa cara como o mundo funciona bem sem nossa presença massiva, a crise é humana, o trauma é nosso, porque afinal, mesmo os rios que matamos, continuam a correr... Evidente que meu interesse tem uma urgência legítima, mas fico lembrando de como  Krenak insiste na necessidade de nos afastar da ideia do antropoceno.. tua Videoperformance conversa diretamente com isso né?

 

M.G. : Então, a serie Horizonte de Exterioridade Radical foi criada durante a pandemia do Covid-19 e retrata justo a queda do antropoceno  no abismo criado entre indivíduo/natureza. Com o corpo em inércia devido a suspensão, retorno para as quedas como forma de reorganizar os mecanismos de defesa de meu corpo para a nova situação que estava se formando no planeta, buscando romper a zona de conforto de um corpo que se encontrava em quarentena em um kitnet de 50 m², tentativas de romper  a inércia, uma busca incessante por desviar os caminhos da norma.  O corpo como voo doo, a queda como agulha e o público como objeto enfeitiçado, tendo agora as redes de fibra óptica e wi-fi como canais para acessar o campo do espectador.  A queda como feitiço de demarcação, uma afirmação da terra como extensão de minha carne. Fui construindo 17 instruções que vieram de recortes, fragmentos de mapas, que fui recolhendo da leitura de autores que estiveram bastante presentes no fortalecimento e manutenção de minha saúde mental na vida e principalmente na pandemia, Jota Mombaça, Michelle Matiuzzi, Denise Ferreira da Silva, Ailton Krenak e Pedra Costa, pessoas que tem possibilitado a criação de outros mundos possíveis.

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Em muitos diálogos com Laryssa Machada, artista visual com quem desenvolvi a performance, nos deparamos com a necessidade de criar nossas ficções, de romper com essa ficção cisheterobranca. Daí surge um jogo que retrata um mundo em ruínas, com estruturas que já não se sustentam,  cuja manutenção está nas mãos conservadoras dos que não se cansam de estuprar a terra, de furar buracos, destruir montanhas… já não sei mais se o jogo que se cria na performance visual Horizonte que tem 17 quedas/fases/capítulos/instruções/gatilhos é para adiar o fim deste mundo (organismo vivo do qual fazemos parte) ou para adiantar o fim do mundo como nos foi dado por ‘eles’. Diante do cansaço da repetição, crio um jogo entre o corpo em queda e o fundo do vídeo/figurino com imagens do arquivo da humanidade e suas formas de destruição do planeta. A gente criou uma metáfora com a fala de Ailton Krenak: “Porque nos causa desconforto a sensação de estar caindo? A gente não fez outra coisa nos últimos tempos se não despencar. Cair, cair, cair. Então porque estamos grilados agora com a queda?” presente  no livro “Ideias para adiar o fim do mundo”. 

foto e colagem: Laryssa Machada

Performance Horizonte de Exterioridade Radical realizada durante a pandemia do Covid-19 na Chapada Diamantina-BA;

K.I : Tem uma coisa importante também no teu processo que é o deslocamento né, isso muda tudo, eu acho que já dá pra arriscar em dizer que a tua criação em performance considera a relação com o ambiente “natural” e o deslocamento. 

 

M.G : Sai de Recife aos 18 anos porque percebi um condicionamento entre os profissionais da dança que pareciam seguir caminhos muito parecidos entre cias e escolas de dança, senti que se eu permanecesse ali minha rota profissional e o meu jeito de mover estariam determinados a um caminho já traçado por outros corpos, com a presença forte de técnicas e jeitos de mover dos diretores e professores de dança da cidade. Ao chegar no Goiás e poder desmanchar e recriar minha identidade iniciei uma pesquisa corporal buscando minha autenticidade, a verdadeira identidade do meu mover, tentando enxergar todos os enraizamentos e memórias de todas as aulas que fiz, passei 2 anos sem fazer aula que envolvesse alguma técnica rigorosa e passei a buscar a natureza como mestra, aprendendo a mover com os animais, as plantas, as montanhas, a água. Há 4 anos estou em uma viagem que já passou por 4 biomas distintos, uma investigação sobre como cada paisagem altera o tônus de meu corpo, todas as qualidades de movimento se transformam junto com o lugar. Como é pra tu essas rotas traçadas para os profissionais da dança em Recife? 

 

K.i. : Eu não sei se é muito diferente de outros estados aqui do Nordeste, onde circula menos dinheiro para cultura, tem menos trânsito de diferentes produções e a manutenção delas, e arrisco dizer que com isso, um apego no que foi duramente construído. É difícil estudar dança aqui, as coisas demoram a se reciclar, mas apesar disso, Recife é muito resiliente e articulado, a criação do curso de licenciatura em dança aqui só foi possível por mobilização da sociedade civil, por exemplo. Minha formação teve grande contribuição de projetos sociais de formação em dança de cias daqui que na saída da era do balcão pra era dos editais, foi a forma que as cias encontraram de se sustentar. Recife tem uma arte teimosa…

Mas existem outras formas de estudar e criar em dança, e acho que teu processo com "Alomorfia'' mostra isso, tu podes falar mais sobre esse trabalho?

 

M.G. : O processo de criação de alomorfia se deu a partir da minha inquietação em meio à civilização apodrecida, no contexto de um país colonizado, e que há mais de 500 anos sofre um intenso processo de desconexão com a natureza e de distanciamento da forma de vida de seus povos originários.  Com o uso de plantas psicotrópicas e de rituais de imersão em outros estados de consciência, tenho praticado exercícios de butoh e liquid dance buscando uma restituição do corpo a um possível estado natural, nesse sentido Klein escreve em seu livro Ankuko Butoh:

“Essa suposta restituição do corpo ao seu estado natural, além de proporcionar uma relativa diluição do indivíduo em uma substância primordial, potencializaria também a construção de uma maior afinidade com alguns outros seres extra-humanos, como plantas e animais específicos, provendo dessa maneira, esse corpo com uma forma de autoconhecimento sobre a sua natureza fundamental, ao aproximá-lo dos seus instintos mais básicos.” [3]

Com minha vivência de uma identidade e sexualidade transviada, os rejeitos sociais e uma viagem feita às margens da sociedade, encontro no Butoh uma forma de construção desse corpo que dança a escuridão da existência humana e se coloca como corpo-enfrentamento aos padrões cis normativos. E nas palavras de Centonze

“As políticas do corpo carnal no Butoh são visíveis em um nível coreográfico. Como dança, o butoh revela um criticismo corporal dissidente e rompedor, que implica uma resistência radical ao corpo no modo como é manipulado pela sociedade do espetáculo. O corpo é empurrado além de seus limites, e sua essência deve ser preservada de esteticismos, sensacionalismos ou exibicionismos. Dessa forma, a radicalidade do nikutai (corpo carne) torna-se um ato político. Alcançar uma alta intensidade desse emprego do corpo implica uma posição política. O movimento torna-se então uma práxis política e anticapitalista na sua economia. [4]

Depois que realizei a performance “Alomorfia” no CCHLA da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) no dia 25/09/2018 pouco antes da eleição presidencial, fui alvo de vários ataques fascistas, inicialmente nas redes sociais Instagram e twitter, onde teve vídeos curtos da performance publicados em perfis de notícias da extrema direita que depois circularam por Jornais locais do estado da Paraíba e até mesmo no G1. Em menos de 24 horas após a performance existiam grupos de denunciantes no WhatsApp, a diretora do CCHLA Mônica Nóbrega iniciou uma investigação sobre a performance junto a prefeitura universitária, e uma série de comentários de ódio e ameaças tomou conta das redes… (prints de redes sociais sobre a performance). 

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Matéria em mídia local da cidade de João Pessoa vinculada um dia após a realização da performance.

O ano é 2018, um corpo nu as 22 horas da noite, em performance, investigando o abismo do antropoceno/natureza, um corpo em queda, que não emite violência, caminhando de 4 patas exalando vitalidade, habitando um estado natural em um ato que foi presenciado por no máx. 20 pessoas, que toma conta das redes sociais e gera incômodo, principalmente no público cis-hétero de direita, que ao exalar violência em direção ao corpo em estado natural demonstram a fragilidade de sua masculinidade, o corpo animalesco que remete a selvageria faz sucumbir às estruturas do pensamento hegemônico que busca a manutenção dos padrões por eles impostos. Prestes a entrar em uma fase de regressão em relação a políticas públicas e de censura na arte, os ataques pareciam prever a ruína que estava por vir, a intolerância e o controle social que os próximos dois anos trariam com fervor ao nosso país.

Todos os ataques e a repercussão que ‘Alomorfia’ tomou na cidade de João Pessoa-PB, além de gerar um incrível material para criação de um novo trabalho que nomeio de “Aclamação Pública”, me fez refletir sobre a potência do meu corpo em performance, um corpo-bomba que ao explodir em um ato de 20 minutos deixou em pedaços o pensamento hegemônico e conservador que paira em boa parte da população da cidade de João Pessoa, passo a entender meu corpo em performance como um gerador de incômodos.

 

K.I : Sim eu lembro de como foi aterrorizante, eu fiz a produção dessa apresentação, rapidamente tiramos tudo que tinha online que envolvia o nome da equipe e saímos de João pessoa “escondidas”, de lá pra cá vimos tantas outras artistas serem atacadas e censuradas tendo alguns casos sendo resolvidos somente anos depois como o do performer Maikon K. 

 

“Tenho dificuldade de reprimir um movimento de pudor. Dificuldade de calar em mim um protesto contra a indecência. Contra o mal-estar que pode haver em encontrar-se nu, o sexo exposto, nu diante de um gato que nos observa sem se mexer, apenas para ver. Mal-estar de um tal animal nu diante de outro animal, assim, poder-se-ia dizer uma espécie de animal-estar: a experiência original, única e incomparável deste mal-estar que haveria em aparecer verdadeiramente nu, diante do olhar insistente do animal, um olhar benevolente ou impiedoso, surpreso ou que reconhece. Um olhar de vidente, de visionário ou de cego extra lúcido. Como se eu tivesse vergonha, então, nu diante do gato, mas também vergonha de ter vergonha."  (DERRIDÁ, 2002, p.16 )³
 

Isso me faz refletir muito sobre os nossos trabalhos com o nu, porque por mais que se trabalhe com nudez há tanto tempo nas artes do agora, nunca deixa de ser uma questão. Em “Por onde andam os porcos” eu não tinha a priori uma intenção de causar incômodos, tinha uma intenção de testar se era possível borrar o apego à imagem de um corpo nu, a partir do risco ao qual esses corpos se submetem. Existe essa metáfora no trabalho com o risco em que somos submetidas todos os dias por um sistema neoliberal que nos destrói física e psicologicamente, mas nunca por completo a fim de garantir o máximo de produção e manutenção do próprio sistema. Então colocar-se em risco de forma consciente seria uma irrupção nessa lógica, estar consciente ao que somos submetidas e agir diante disso, é o momento de sair das fileiras, é o motim, a desordem...

De início o nu tinha esse propósito, estarmos ainda mais fragilizadas para passar um marca-texto nisso. Eu lembro que foi uma questão, uma das performers insistiu muito em não dançarmos nuas, ela dizia que já que o trabalho tem exposição ao risco, fazia mais sentido usar roupa, e que talvez dançar nu numa galeria toda branca, só espelhasse um modo europeu de fazer a dita arte conceitual. Mas a discussão sobre o modo como o risco seria apresentado nos fez chegar a consenso. 

Na estrutura do trabalho sempre que algum motim acontece há uma captura, de alguma forma o coletivo sofre uma “normatização” e procura outra forma de organizar-se para sair dela, foi assim, olhando para o constante cerceio à liberdade do corpo, que entendemos que sim, era possível usar esse incômodo para falar  “esse corpo é meu ! ”.  E então fomos experimentando como uma buceta pode engolir o espaço, como um cú amedronta, como um corpo com pau se aproximando de homens cis pode mudar toda a configuração do espaço. Porque até esse momento do trabalho existe uma performance humana, existe uma resposta à dor, ao impacto, existe uma expressão numa língua inventada, há uma forma de se relacionar com a audiência que se vale de referências às relações humanas. E existe um momento outro em que nossas corpas já não se reconhecem totalmente humanas, e aí a relação com o pudor, com a nudez me parece ser outra.

M.G. : No momento que acoplamos as próteses de Látex em nossos corpos e adentramos nesse processo de desterritorialização da nossa humanidade criam-se novas camadas de incômodo, curiosidade e contemplação, inicialmente temos um ambiente com pouca luz, os corpos agora mutados se encontram por trás de placas que distorcem suas imagens, criando uma espécie de gênese de um novo corpo, minha prótese que é um tubo digestivo externo que sai de minha boca e é acoplado por um dildo em meu cu gera muitos incômodos, as expressões do público demonstram muitas inquietações ao me ver passar, os corpos se afastam de meu corpo. Mas ao chegar no fim do espetáculo, sinto que nossos corpos depois de passarem por todas as situações de risco e exaustão, já não carregam mais nada, pudor ou qualquer outro traço do antropoceno, tudo se esvai, somos corpos mutados vazios, corpos presentes, que podem ressoar tudo que existe entre a vida e a morte, prontos para caminhar em qualquer direção rumo a destruição do mundo como nos foi dado.  

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protese número 01 ativaca por Meujael Gonzaga na MITSP 2020. Foto: Nereu JR. 

Durante o processo de criação das próteses e dos objetos de cena eu e Iagor Peres(artista visual que assina direção de arte do trabalho) vivenciamos uma imersão em meio a gesso, látex, placas de TV lcd, espuma expansiva e outros produtos químicos. Foram   algumas   semanas   de   trabalho 

exaustivo, esculpimos  novos órgãos para  as performers,  a prótese como única forma de se manter viva em um mundo

 em ruínas. Tentativas de desfazer esses corpos num desmanche, no chão de um laboratório, e recriar seus sentidos e formas. Por isso pesquisamos a construção e uso de próteses. Em sua definição clássica, a prótese é uma peça artificial que substitui um órgão deficiente. Mas o que buscamos ali é a gênese de um corpo outro, que atualmente se aprofundando e colaborando com outras artistas temos chamado de “próteses xamânicas”, artefatos ou instrumentos de poder que gerem nos corpos alterações de estados e consciência, visando não à funcionalidade, mas a outras formas de se mover, sentir e se relacionar com o mundo. Ao invés de funcionalizar e dar produtividade aos corpos, nossas próteses querem desfuncionalizar, colocar os corpos em delírio, expandir e borrar identidades. É possível construirmos próteses que deem ao corpo outro modo de existir? Que transformação radical pode haver num corpo por meio de uma prótese? Como uma prótese pode ativar o transe e desativar aquilo que é humano em nós?

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K.I. : É, as próteses apareceram como mais uma insurgência frente às diversas capturas presentes no trabalho. Foi uma forma de não dar uma solução para a ruína que vivemos, porque não existe mesmo. Estar criando agora pensando sobre nossa relação com o tempo, me faz pensar em como esse tempo colonizado que pensa sempre para frente e que promete que amanhã pode ser melhor, não se responsabiliza pelo ciclo dos acontecimentos, há quanto tempo a gente fala de racismo? Por que que não nos responsabilizamos? Quando a gente olha para tudo, é fácil perceber que existe uma negação em ver que o tempo e as ações dão voltas,  que não seguem somente para frente, essa pedagogia do progresso é muito irresponsável. E se afastando um pouco, é possível ver como esse sistema que vivemos e que tem arruinado o mundo tem mais ou menos 400 anos, o capitalismo é muito novo, é mais uma coisa na larga história da humanidade, existiram sistemas econômicos (não colonizadas pelo homem branco) que perduraram mais de 5 mil anos e que não tem a ver com essa lógica mega extrativista que a gente vive. Eu sei que eu não vou viver isso, mas acredito que existem 
possibilidades de se viver aqui em comunidade sem espelhar algo como o neoliberalismo. 

Eu não tô querendo com isso desfazer tudo que disse antes sobre a importância de não esperar, é justamente o contrário, é muito importante agir, agir para com essa comunidade que conhecemos, e uma que virá nessas voltas que o tempo dá.  Talvez, TALVEZ, seja por isso que muitas vezes desacreditando, a gente continua produzindo arte. 

protese número 02 ativaca por Kildery Iara na MITSP 2020.
Foto: Nereu JR. 

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protese número 04 ativaca por Marcela Felipe na MITSP 2020.
Foto: Nereu JR. 

PARA SABER MAIS

1 S.B Klein, op.cit, p. 39.

2 K. Centonze, Resistance to the society of the spectacle, Danza e Ricerca, n. 0, p. 183.

3-BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, n.19, pp.20-28, 2002.

4 –O animal que logo sou – DERRIDÁ, jacques (1930). trad. Fábio Londa -  São Paulo editora UNESP; 2002

AS AUTORAS

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Iara é performer, artista visual, atriz e coreógrafa recifense, integrante do CARNI (Coletivo de arte negra e indígena) no qual faz parte do corpo de curadoras da plataforma "Palco Preto". Fez parte do elenco do Grupo experimental (PE) e Cia municipal de dança de Caxias do Sul (RS). Facilitou o laboratório "Barrocada" do projeto criaturas urbanas com Lourival Cuquinha(SP/PE), Ronald Duarte(RJ) e Iagor Peres(RJ/PE).  Trabalhou oito anos como arte educadora em dança no estado de pernambuco, tendo sido também professora da escola preparatória de dança em Caxias do Sul- RS. Atuou em filmes com diretores como Daniel Bandeira, Déa Ferraz, Felipe Fernandes, Han huang(CHI/FRA) e Manuela Andrade. Atualmente dirige o projeto “Por onde andam os porcos” Realizou residências artísticas em ressonance butoh e liquid dance com Pilar Echevarria (COL) e Isa Barreto (SE). Em suas criações, preza pela relação horizontalizada entre corpo e espaço, entre os corpos e seus próprios dispositivos improvisacionais. À procura de maneiras de acelerar o fim do mundo como o conhecemos, segue investigando a possibilidade de existência de um corpo desobediente num presente distópico e num futuro possível. Formada em Licenciatura em dança pela UFPE, investe na integração de linguagens artísticas, tendo o corpo como disparador de questões.

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Meujael Gonzaga é performer, figurinista e artista visual, vive no meio do mato em Caeté-Açu, Bahia. Tendo a prática do deslocamento, por sua vivência como mochileira, e o recorte arte/natureza como como motor para suas criações. Está há quatro anos em uma viagem por diferentes biomas brasileiros pesquisando o corpo de um possível "ser natural", praticando nesse processo, rituais com plantas psicotrópicas associando-os à dança Butoh e à dança líquida, tendo essas práticas como eixo de desenvolvimento de sua pesquisa. Em parceria com sua mestra Pilar Echavarria(COL) pesquisa o LiquidButoh e sua performatividade subaquática e vem produzindo residências artísticas na natureza. Integrante da Possível Coletiva, tem focado sua pesquisa no autocuidado das corpas dissidentes e investigando a potencialidade dessas vivências relacionadas ao treinamentos butoh. Atualmente é performer e figurinista do espetáculo “Por Onde Andam os Porcos”(PE) e tem produzido curtas e performances visuais na Chapada Diamantina.

COMO CITAR ESSE TEXTO

IARA, Kildery; GONZAGA, Meujael. Deixar cair nas voltas que o tempo dá. Coletiva, Recife, n. 28, Coletiva. mai.jun.jul.ago 2020. Disponível em https://www.coletiva.org/dossie-racismo-n28-artigo-deixar-cair-nas-voltas-que-o-tempo-da.  ISSN 2179-1287.

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