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Precarização do trabalho e saúde do trabalhador

Vera Lucia Navarro

INTRODUÇÃO

Os problemas de saúde, de ordem física ou psíquica, relacionados ao trabalho têm crescido em todo mundo e, em um ambiente de precarização e intensificação do trabalho tal quadro tende a se agravar. Assim, a saúde do trabalhador e a precarização do trabalho são temas atuais, relevantes e socialmente importantes.

A saúde do trabalhador é questão complexa. É preciso lembrar que seu estudo e compreensão, através de pesquisas ou de ações práticas, exige que se vá além da discussão de quais são as doenças que os trabalhadores adquirem no trabalho, quais são os riscos a que estão expostos, a insalubridade e os acidentes que os acometem.

Para se entender como é subtraída a saúde dos trabalhadores no processo de trabalho, como se dá a exploração de sua força de trabalho, é necessário saber de qual trabalho estamos falando. É preciso compreender como se dá a organização do trabalho, saber de quem são as máquinas, qual é o ritmo imprimido, de quantas horas é composta a jornada, qual é o valor do salário, a forma de remuneração, quais são os vínculos empregatícios, quais são os produtos manipulados e como se dá o prolongamento social disto tudo. Ou seja, é preciso conhecer o fenômeno em sua totalidade.

Tal discussão está presente no livro “Insalubridade: morte lenta no trabalho”, do advogado brasileiro Antônio José de Arruda Rebouças, publicado pela editora Oboré e pelo Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisa de Saúde e dos Ambientes de Trabalho (DIESAT), que se tornou referência no campo da saúde do trabalhador.

É necessário deixar claro que a compreensão dos fenômenos relacionados à saúde do trabalhador passa, obrigatoriamente, pela compreensão do trabalho a que está submetido e da sociedade no qual tal trabalho se insere. É necessário pensar historicamente e entender o processo de trabalho a partir de construções históricas e sociais, não meramente do ponto de vista técnico. Este enfoque é dado pelo pensamento de Karl Marx e a discussão em torno da relação trabalho e saúde é bem tratada no livro “Processo de produção e saúde: trabalho e desgaste operário”, dos pesquisadores mexicanos Asa Cristina Laurell e Mariano Noriega, publicado pela Hucitec.

Assim, entender o que é trabalho, como são organizados os processos, quais são as relações de trabalho, os salários, as condições de trabalho, etc., é o ponto de partida para se conhecer a saúde do trabalhador.

 

TRABALHO CATEGORIA CENTRAL DE ANÁLISE DAS SOCIEDADES

Karl Marx, Emile Durkheim e Max Weber, autores clássicos das Ciências Sociais, têm, em suas obras, o trabalho como categoria chave para a compreensão dos fenômenos sociais, ainda que com enfoques diferenciados. Na impossibilidade de neste espaço apontar esta diferenciação, vamos no ater ao conceito marxiano de trabalho, ainda que de forma sintética, pois é somente no conjunto de sua obra que podemos enxergar a amplitude daquilo que Marx entendeu por trabalho, que está diretamente ligado à sua concepção de homem e da natureza. Esta compreensão de trabalho Marx apresenta nos “Manuscritos Econômicos e Filosóficos”.

O trabalho, para aquele autor é, antes de tudo, uma relação do homem com a natureza. Marx parte do princípio de que o homem é um ser natural, faz parte da natureza e com ela se relaciona para dali extrair os bens necessários à sua sobrevivência. Neste intercâmbio com a natureza, o homem deixa suas marcas, modifica-a e também é modificado. É neste processo vital que se estabelecem também as relações entre os próprios homens. Isto é, o trabalho. Portanto, na base das relações humanas está o trabalho. O homem é, pois, produto de seu próprio trabalho, atividade que é consciente e proposital.

Ao longo da história da humanidade esta relação do homem com a natureza sofreu inúmeras mudanças e, no capitalismo, esta relação muda radicalmente. Diferentemente do que acontecia em outras formações sociais que antecederam o capitalismo, o processo de trabalho neste tipo de sociedade passa a ser cada vez mais submetido ao processo de valorização. Aqui o que importa é o valor de troca das mercadorias, e não apenas o seu valor de uso, sua utilidade. Neste tipo de formação social, que tem em vista a reprodução ampliada do capital, as transformações no processo de trabalho se dão em busca de aumento constante de produtividade. Para isto se faz necessário, cada vez mais, o controle do processo de trabalho pela gerência. A divisão do trabalho, ao longo do desenvolvimento capitalista, avança desqualificando o trabalho, intensificando-o, ao mesmo tempo em que aumenta a produtividade.

 

MUDANÇAS NO TRABALHO NA VIRADA DO SÉCULO XX PARA O SÉCULO XX

É sabido que o trabalho é um importante determinante do processo saúde-doença dos indivíduos e da coletividade, portanto é necessário entendermos as mudanças em curso no mundo do trabalho para podermos analisar e avaliar a saúde dos trabalhadores nos dias atuais.

Nas últimas décadas, presenciamos mudanças no mundo do trabalho que têm levado à precarização tanto das condições laborais quanto das relações de trabalho e que repercutem na saúde dos trabalhadores e no perfil dos adoecimentos. Tais mudanças, tanto de ordem tecnológica quanto organizacional, se intensificaram e se tornaram mais visíveis na virada do século XX para o século XXI, período marcado pelo final da guerra fria, da globalização e de uma “nova ordem mundial”.

Ao final do século XX, a promessa capitalista de pleno emprego não foi cumprida – o desemprego estrutural cresceu e, com ele, agravou a questão social. Na década de 1990, vivenciamos um cenário de acirramento da competição intercapitalista em âmbito mundial – as empresas tiveram que se readequar à nova realidade e, para tanto, implementaram mudanças em seus aparatos tecnológicos e organizacionais, intensificando o processo de reestruturação produtiva. Tais mudanças resultaram em redução de postos de trabalho, intensificação do ritmo de trabalho e precarização, dentre outras.

Passamos então a viver um antagonismo: enquanto parcela da classe trabalhadora passou a sofrer com o desemprego ou com empregos precários, a parcela que continuou empregada vem sofrendo com o excesso de trabalho. Mesmo em países como a França, um dos poucos a reduzir a jornada de trabalho para 35 horas semanais, os trabalhadores adoecem por excesso de trabalho devido às horas extras trabalhadas.

É sabido que no Brasil, onde a jornada de trabalho é de 44 horas semanais, se trabalha muito mais que isto. O trabalho terceirizado, a domicílio, que está em expansão, é um dos responsáveis pelo aumento da jornada além do previsto em lei. No trabalho realizado a domicílio, realizado de forma geral sem contratos formais, é comum se trabalhar até a noite, com jornadas que se estendem para os finais de semana, feriados, sem período de férias. Tais fatos foram facilmente observados em pesquisa de campo quando do estudo da produção de calçados em Franca, estado de São Paulo, e o registro desta forma precária de contratação de trabalho foi publicado no livro “Trabalho e trabalhadores do calçado”, de minha autoria, publicado em 2006, pela Editora Expressão Popular.

O processo de reestruturação produtiva no Brasil atingiu de forma diferenciada setores e ramos da economia e trouxe além de mudanças na base técnica, a disseminação do trabalho terceirizado, informalizado, precarizado. Um excelente panorama de como se deu este processo no país pode ser visto no livro “Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil”, organizado por Ricardo Antunes e publicado pela Editora Boitempo, em 2006. Esta obra resgata a centralidade do trabalho na contemporaneidade, trazendo textos de autores como István Mészáros, Luciano Vasopolo, Ricardo Antunes, Giovanni Alves, Ariovaldo de Oliveira Santos, Márcio Pochmann, e José dos Santos Souza.

 

Ali, é possível também se conferir, a partir de uma gama de pesquisas científicas, ricas em dados empíricos, empreendidas por pesquisadores da sociologia do trabalho e áreas correlatas, como as mudanças na base técnica associadas a mudanças de ordem organizacional e as políticas de cunho neoliberal intensificaram o trabalho e ampliaram de forma explosiva a terceirização, a subcontratação e demais formas de precarização do trabalho no país.

A terceirização é parte constitutiva da reestruturação produtiva e contribui para o desmonte do mercado formal de trabalho, precarizando as relações e condições de trabalho. A terceirização, que na maioria dos casos é sinônimo de precarização, teve início no setor industrial e rapidamente se expandiu para outros setores da economia. Esta forma de redução de custos das empresas afeta hoje diferentes categorias profissionais e representa grave ameaça à saúde dos trabalhadores.

 

A aprovação da terceirização sem limites (que inclui a atividade fim) é umas das metas da reforma trabalhista do governo de Michel Temer e representa a desconstrução de todo sistema trabalhista brasileiro. Indicamos aqui dois livros que abordam a questão: “Terceirização: máquina de moer gente trabalhadora”, de Grijalbo Coutinho e a coletânea organizada por mim e Edvânia Lourenço “O avesso do trabalho IV – Terceirização: precarização e adoecimento no mundo do trabalho” (no prelo) editora Expressão Popular/Outras palavras.

 

PRECARIZAÇÃO E MUDANÇA NO PERFIL DOS ADOECIMENTOS RELACIONADOS AO TRABALHO 

É neste contexto de mudanças ocorridas no mundo do trabalho a partir do acirramento da reestruturação produtiva na década de 1990 que observamos alteração no perfil do adoecimento relacionado ao trabalho, com destaque para as lesões por esforços repetitivos (LER) e os adoecimentos de ordem psíquica.

As LER cresceram de forma explosiva e estão associadas à intensificação e precarização do trabalho. De acordo com Herval Pina Ribeiro as LER são um modo de adoecimento emblemático revelador das contradições e da patogenia social e do trabalho desse novo ciclo do desenvolvimento e crise do modo de produção capitalista. Em seu livro “A violência oculta do trabalho – as lesões por esforços repetitivos”, publicado pela Fiocruz em 1999, Herval Ribeiro retrata a realidade dos bancários acometidos pela doença. O pesquisador se refere a LER como uma violência oculta que se dá de forma mais abrandada que um acidente típico, mais sutil, oculta e ocultada.

Também relacionados à intensificação, precarização e maior controle sobre o trabalho, os adoecimentos de ordem psíquica têm crescido muito. Dados do Ministério da Previdência Social mostram que os transtornos mentais e comportamentais ocupam o terceiro lugar em quantidade de concessões de auxílio-doença acidentários no país.

De acordo com o Ministério da Previdência Social (2012): “De 2008 para 2009, o número de afastamentos do trabalho em decorrência de transtornos mentais e comportamentais subiu de 12.818 para 13.478. Em 2010, esse número teve uma queda, passando para 12.150. No entanto, a concessão de auxílios-doença em função de transtornos mentais e comportamentais voltou a subir em 2011, passando para 12.337 casos. Dentro dos transtornos mentais e comportamentais, as doenças que mais afastaram os trabalhadores em 2011 foram episódios depressivos, outros transtornos ansiosos e reações ao estresse grave e transtornos de adaptação”.

No que tange às políticas públicas voltadas à saúde do trabalhador no Brasil, há ainda muito a fazer. Nas últimas décadas foram criadas a Rede de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (Renast) e vários Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (CERESTs ). No entanto, são poucos os que atuam de forma efetiva e que são alinhados ao espírito de uma real política de promoção de saúde dos trabalhadores. Tal discussão pode ser encontrada nos trabalhos de Francisco Antonio de Castro Lacaz e Carlos Minayo Gomez, grandes pesquisadores da área.

A precarização, traço marcante do trabalho contemporâneo e das novas formas de relações de trabalho, se apresenta como multifacetada e está relacionada aos agravos à saúde do trabalhador na contemporaneidade, sejam eles de ordem física ou psíquica. A precarização da saúde dos trabalhadores está “incidindo de modo marcante na saúde mental, que é indissociável da saúde como um todo”, como é demonstrado por Tânia Franco, Graça Druck e Edith Seligmann-Silva no artigo “As novas relações de trabalho, o desgaste mental do trabalhador e os transtornos mentais no trabalho precarizado”.

PARA SABER MAIS

ANTUNES, R. Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil. São Paulo: Editora Boitempo, 2006.

BRASIL, Ministério da Previdência Social, 2012. Informativo Eletrônico da Previdência Social, nº 59. Fev. 2012. Disponível em: <http://www.previdencia.gov.br/arquivos/office/4_120326-105114-231.pdf>.

COUTINHO, G. F. Terceirização: máquina de moer gente trabalhadora. Sçao Paulo: LTr Editora, 2015.

FRANCO, T., Druck, G.; SELIGMANN-SILVA, E. As novas relações de trabalho, o desgaste mental do trabalhador e os transtornos mentais no trabalho precarizado. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 35 n. 122, jul./dez. 2010, p. 229-248.

LAURELL, A. C. e MARIANO, N. Processo de produção e saúde: trabalho e desgaste operário, São Paulo: Hucitec, 1989.

MARX, K. Manuscritos econômicos e filosóficos. Tradução de Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2014.

NAVARRO, V.L. Trabalho e trabalhadores do calçado – A indústria calçadista de Franca (SP): das origens artesanais à reestruturação produtiva. São Paulo: Expressão Popular, 2016.

REBOUÇAS, A. J. de A.; DIESAT. Insalubridade: morte lenta no trabalho. São Paulo: Oboré, 1989.

A AUTORA

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Vera Lucia Navarro é doutora em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e livre docente em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP/USP). Atualmente, é professora associada nesta mesma instituição e credenciada no Programa de Pós-Graduação em Saúde na Comunidade, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/USP e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da FFCLRP/USP.

COMO CITAR ESSE TEXTO

NAVARRO, Vera Lucia. Precarização do trabalho e saúde do trabalhador. Revista Coletiva, Recife, n. 19, maio.jun.jul.ago. 2016. Disponível em: <https://www.coletiva.org/dossie-precarizacao-e-trabalho-precarizacao-do-trabalho-e-saude-do-trabalhador>. ISSN 2179-1287.

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