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Por que a terceirização é considerada uma forma de precarização do trabalho?

Sávio Machado Cavalcante

Vamos, imediatamente, à resposta ao título deste artigo: a terceirização é um eficiente mecanismo de precarização das relações de trabalho porque amplia o leque de possibilidades por meio do qual empresas podem “driblar” direitos, benefícios e conquistas dos trabalhadores e trabalhadoras em geral. O objetivo principal é duplo: o primeiro, bastante óbvio, é o de elevar seus ganhos com a redução dos custos com contratação do trabalho, estratégia que se mostra ainda mais pertinente em cenários de baixo crescimento econômico. Porém, não se trata apenas de ganhos num sentido monetário. O outro objetivo é notadamente político-ideológico, pois a terceirização facilita a transferência ou externalização de conflitos trabalhistas e reforça, no plano dos valores e do direito relacionados ao trabalho, a ordem neoliberal que pretende desvincular a riqueza produzida do conjunto de trabalhadores(as) que são necessários para a produção dessa riqueza.  

 

Em suma, a terceirização é uma estratégia “vendida” como nova, mas, em verdade, reedita momentos da história em que inexistiam obstáculos à completa “mercadorização” da força de trabalho. Tentemos, aqui, entender um pouco mais os detalhes e as razões por trás desse argumento que levantamos em linhas gerais.

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Comecemos por um fundamento teórico essencial para a compreensão desse fenômeno. Quando Karl Marx, ainda na segunda metade do século XIX, desenvolveu o que chamou de “crítica da economia política” em “O Capital”, percebeu que sua exposição exigia um ponto de partida específico para toda a argumentação. Não foi por acaso que a redação do primeiro parágrafo de seu livro já problematizava o que era visto como um fato natural pela economia política, a saber, que a riqueza das sociedades em que prevalece o modo de produção capitalista aparece como uma imensa coleção de mercadorias.

Por que podemos dizer que Marx já tomava esse ponto de partida de modo crítico? Porque, em vez de naturalizar a relação social capitalista, o autor constatou que a riqueza social – que pode ser expressa de inúmeras maneiras e abarca toda a diversidade técnica, cultural e artística – era limitada nas sociedades dominadas pelo capitalismo, ainda que esse modo de produção crie mercadorias em abundância. E o que dava esse limite era a própria forma na qual se revestia a produção: a forma mercadoria. Em outras palavras, não há nenhuma força que, “naturalmente”, faça com que a riqueza seja expressa em mercadorias. Mas, para existir a relação social capitalista, é preciso que tudo seja reduzido à forma mercadoria – independentemente do conteúdo em questão.

Em decorrência dessa lógica, o próprio trabalhador de algum modo também se reduz a uma mercadoria. Mas, não de qualquer jeito. Para Marx, o que o capitalista compra do trabalhador(a) não é o “seu trabalho”, mas sua força de trabalho. E, diferentemente das outras mercadorias que o capitalista coloca em ação na esfera produtiva, o uso da força de trabalho faz com que seja gerado um valor maior do que aquele necessário para reproduzir a própria força de trabalho, isto é, ela gera um excedente, um mais-valor.

Por que tivemos que retroceder a esses fundamentos da crítica da economia política para falar sobre terceirização? Para precisarmos dois pontos cruciais: a) a geração de valor e mais-valor depende da utilização dessa mercadoria chamada força de trabalho, o que significa dizer que exige o trabalho vivo e b) por mais que seja reduzida a uma mercadoria, esse processo nunca é realizado sem resistência, sem conflito, por parte dos que são submetidos a essa “lógica da redução”. Existe, portanto, uma luta política e ideológica – não apenas “econômica” – em qualquer relação de trabalho.

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De forma geral e sem entrarmos na diversidade característica desse processo histórico, é possível dizer que, ao longo do século XX e em decorrência de fortes lutas sociais, foram criadas disposições jurídicas em boa parte dos países capitalistas que buscavam conter as formas mais predatórias de exploração da força de trabalho – o que, em última instância, era importante à própria reprodução do capitalismo. Afinal, se não houver algum tipo de consentimento entre os trabalhadores, não há forma social de produção baseada na desigualdade que resista.

Com legislações específicas às questões trabalhistas, foram impostos limites e obstáculos para o uso capitalista da força de trabalho, como a limitação de jornada e da faixa etária apta ao trabalho, normas técnicas para segurança dos trabalhadores, direitos sociais atrelados ao contrato de trabalho, etc. Para o capital, a força de trabalho continuaria sendo uma mercadoria, mas essas imposições legais exigiam um tratamento diferente.

Havia, portanto, um pressuposto muito importante para consolidar essa lógica, qual seja, o de que as empresas eram de algum modo responsáveis pelo conjunto dos trabalhadores que executava, sob suas ordens, a produção. Os trabalhadores, nesse sentido, estavam atrelados não apenas economicamente, mas também juridicamente, a seus contratantes. O chamado modelo “taylorista-fordista”, bastante verticalizado e que busca reunir, dentro de um mesmo espaço, as diversas tarefas necessárias à produção dos produtos e serviços, deixava mais explícito para o Estado e para a sociedade quem eram os gestores e controladores de cada processo produtivo – o que tornava pelo menos mais discernível quem deveria ser responsabilizado caso a legislação do trabalho não fosse cumprida ou com quem negociar em casos de conflitos e greves.

Ocorre que, desde principalmente o último quarto do século XX, esse modelo de regulação do trabalho – por certo muito diferenciado em cada país – começou a desmoronar em decorrência do que se chama de reorganização capitalista da produção e do trabalho. Os modelos organizacionais pautados pela produção “flexível” e “enxuta”, alguns deles derivados de experiências no Japão, criaram formatos de empresa e tipos de contratos de trabalho de natureza distinta daqueles que vigoravam na tradicional empresa fordista do século XX, isto é, de contratos de trabalho com jornada em tempo integral e com as garantias legais asseguradas, no caso do Brasil, pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT).

E, desde o início dessa reorganização capitalista da produção, a terceirização tem sido utilizada, por todos os tipos de empresa, como um dos instrumentos centrais de suas estratégias de acumulação. Mas, afinal, existe um consenso sobre o que é, de fato, a terceirização?

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Nas ciências sociais em geral (incluindo a economia!), afirmar que os conceitos não são neutros não é nenhuma novidade. Qualquer discussão só pode começar a partir dessa constatação, o que significa, sobretudo, identificar os interesses subjacentes a cada tipo de formulação com pretensões analíticas.

Definir o que é a terceirização está igualmente longe de ser algo dissociado de interesses. É reproduzido, comumente, como se fosse algo inexorável e positivo. Uma “modernização” da relações de trabalho, muitos dizem, especialmente os empresários. Porém, como já deveria ser evidente, “modernizar” algo está longe de ser um processo sem contradição e necessariamente positivo para todos os agentes em questão.

De forma geral, a terceirização é conceituada como a transferência de parte do processo produtivo de uma empresa, a contratante, que passaria a ser feita por outra organização (normalmente classificada como pessoa jurídica) – a contratada ou “terceirizada”. A ideia é que a contratante passaria a se focar nas atividades em que seria especializada, deixando de realizar aquelas menos importantes para seus propósitos. A contratada, por sua vez, teria justamente nessas áreas o seu foco, ou seja, seriam supostamente especializadas nas atividades que foram sujeitas à terceirização. Quando bem realizada, os resultados dessa reengenharia seriam o aumento na qualidade de produtos, serviços e maior eficiência.

É esse, em linhas gerais, o argumento empresarial. Ele é sustentando por alguns estudiosos da administração que enfatizam a necessidade de a empresa definir seu foco de ação, seu core business, e transferir as demais para terceirizadas – luta vitoriosa, pois a ideia foi incorporada por súmula do Tribunal Superior do Trabalho que criou, dentro dessa lógica, os termos jurídicos de “atividade-fim” e “atividade-meio”.

Em suma, supõe-se que a terceirização seria a radicalização da divisão do trabalho numa economia capitalista “pós-fordista”. Ou seja, se a figura de empresa típica do fordismo foi caracterizada como extremamente vertical, com a reestruturação produtiva adveio um formato de empresa mais horizontalizada, que exigiria a fragmentação do processo produtivo.

Contudo, empiricamente, a terceirização está distante dessa imagem. Ela não implica necessariamente a externalização das atividades, nem a radicalização da divisão social do trabalho das empresas capitalistas, apesar de reivindicar e buscar vestir esse traje.

Esse fato pode ser apurado nos resultados concretos de centenas de pesquisas sobre o tema. Um olhar mais atento às atividades empresariais – o qual adentra o interior das empresas, analisa os contratos que firmam, a sua organização do trabalho, seu modus operandi – demonstra que as empresas contratantes não deixam de comandar a atividade terceirizada.

É importante que esse ponto seja destacado: a terceirização aparentemente divide e fragmenta o processo, podendo haver, eventualmente, segregação espacial de atividades, mas a relação não se efetiva entre empresas “autônomas”. Pelo contrário, a essência do controle de fato do processo produtivo das atividades terceirizadas não muda, continua sendo da empresa contratante. Esse controle pode ser feito por diferentes métodos, até de maneira insidiosa, mas invariavelmente inclui a detenção do know-how da atividade e a gestão da força de trabalho empregada.

Portanto, a terceirização não significa externalização de fato de atividades da produção. O que se efetiva é uma contratação diferenciada da força de trabalho por parte da empresa tomadora de serviços. Com isso, busca-se a redução de custos e/ou a externalização, aqui sim, de conflitos trabalhistas, aumento de produtividade espúria, recrudescimento do controle sobre o trabalho, flexibilidade e desresponsabilização por diversos riscos aos trabalhadores. Em suma, com maior ou menor intencionalidade, as empresas buscam diminuir resistências da força de trabalho e as limitações exógenas ao processo de acumulação.

A divisão do trabalho sempre existiu e continuará existindo no capitalismo. Por isso, confundi-la com a terceirização apenas serve para fortalecer o argumento da inevitabilidade. Todavia, o próprio caráter do capitalismo global comprova essa diferença. Afinal, se seus defensores estivessem corretos, isto é, se a terceirização representasse transferência de partes do processo produtivo para redes de empresas especializadas e autônomas, o resultado seria uma crescente pulverização de capitais. Porém, presenciamos exatamente o inverso, isto é, o acirramento da centralização de capital em escala global.

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Estamos diante, portanto, de uma forma específica de contratação de trabalhadores, que se vale de figuras interpostas (normalmente pessoas jurídicas) para atingir seus objetivos. Mas, poder-se-ia objetar: isso é necessariamente ruim? Não seria apenas o modelo de contratação mais adequado aos novos tempos e a novos padrões de consumo, os quais exigem rapidez e qualidade na produção de mercadorias e prestação de serviços?

Ocorre que o sentido histórico da terceirização é outro. Se o assalariamento, em si, desconhece limites à exploração, a terceirização potencializa esse processo. Não por acaso, o uso desse mecanismo tem um efeito visível, identificado pelas pesquisas sobre o tema: a precarização do trabalho.

O grau de atrelamento das terceirizadas em relação às contratantes e a precarização do trabalho que é gerada podem ser demonstrados de diversos modos e por meio de vários indicadores. O caso emblemático discutido pelos estudos do trabalho é o chamado “modelo japonês”, formulado originalmente pela empresa automobilística Toyota que, para promover uma forma de produção com ampla redução de custos, criou uma rede extensa de pessoas jurídicas terceirizadas totalmente vinculadas à empresa central. A diferença essencial era a de que os direitos e benefícios atrelados à empresa principal não se estendiam à rede de subcontratação.

Para o capitalista individual, a intenção imediata da terceirização comporta alguma variação, o que quase sempre inclui corte de custos. Mas essa forma de contratação também acarreta redução dos limites impostos à exploração do trabalho, mesmo quando tal consequência não se insere deliberadamente nos cálculos empresariais.

No Brasil, as implicações deletérias da terceirização, fartamente apontadas, não são meras contingências ou desvios, mas derivam da redução ou ausência de limites à acumulação na vigência desse mecanismo de contratação. Os trabalhadores terceirizados recebem salários menores, têm jornadas mais extensas e menor resguardo de direitos e benefícios.

E, sobre um aspecto ainda mais grave, segundo dados do Ministério do Trabalho, a terceirização tende a promover o trabalho análogo ao escravo mais do que uma gestão do trabalho estabelecida sem a figura de ente interposto, o que a vincula às piores condições de trabalho apuradas em todo o país (degradantes, exaustivas, humilhantes, etc.). Considerando os 10 maiores resgates de trabalhadores em condições análogas às de escravos no Brasil, em cada um dos últimos quatro anos (2010 a 2013), em 90% dos flagrantes os trabalhadores vitimados eram terceirizados. Poder-se-ia argumentar que são casos apenas de terceirizações informais, realizada por empresas fraudulentas.

 

Porém, mesmo em situações plenamente formalizadas, ou seja, em que os trabalhadores têm carteira de trabalho assinada, a maioria dos resgates ocorre com terceirizados formalizados por empresas interpostas. Entre esses resgates com terceirizados formalizados, figuram desde médias empresas desconhecidas, até gigantes da mineração e da construção civil, do setor de produção de suco de laranja, fast food, frigorífico, multinacional produtora de fertilizantes e obras de empresas vinculadas a programas do governo federal.

As terceirizações também elevam a probabilidade média de morrer trabalhando no país. Com base em dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), pudemos identificar fortes indícios da relação entre setores econômicos com maior incidência de mortes e o predomínio massivo de terceirizados entre as vítimas.

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Pelo que expomos, vê-se que a terceirização é a estratégia mais afeita ao formato neoliberal de regulação do mercado de trabalho que produz, por onde quer que passe, condições mais precárias para a maior parte do conjunto dos assalariados. Segundo a ótica neoliberal, empresas e trabalhadores precisam de liberdade para firmar contratos sem restrições impostas pelo Estado. Para retomar o que indicamos no começo do artigo, implica dizer que, com a terceirização, espera-se que a força de trabalho seja completamente reduzida à mera forma de mercadoria.

Ocorre que a relação de trabalho não é uma relação simétrica e o reconhecimento desse fato elementar construiu, em todo o mundo – de formas diferentes, é claro – barreiras e limites ao uso da força de trabalho pelas empresas. Afinal, na realidade, não existe apenas a força de trabalho, mas homens e mulheres em toda a sua diversidade. Tudo o que consideramos conquistas civilizacionais depende desse reconhecimento básico. Foi esse processo que tentou – nem sempre com sucesso, infelizmente – limitar a níveis decentes a jornada de trabalho, aumentar salários diretos e indiretos, promover redes de proteção em momentos de crise, enfim, fazer com que a classe trabalhadora fosse incluída, ainda que parcialmente, na repartição da riqueza produzida.

NOTAS

[1] Reproduzo, neste item, argumentos que foram desenvolvidos junto com Vitor Filgueiras no artigo “Terceirização: um problema conceitual e político” (Le Monde Diplomatique, 6/01/2015).

[2] Para uma definição que enfatiza essas características, ver Paula Marcelino e Sávio Cavalcante. “Por uma definição de terceirização”. Caderno CRH, Salvador, vol. 25, n. 65, 2012.

[3] Para uma descrição detalhada desses pontos, ver Vitor Filgueiras, “Terceirização e os limites da relação de emprego: Trabalhadores mais próximos da escravidão e morte”. Campinas, 2014. (Disponível em: http://indicadoresderegulacaodoemprego.blogspot.com.br/2014/08/terceirizacaoe-os-limites-da- relacao-de.html).

O AUTOR

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Sávio Machado Cavalcante é professor do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. Mestre (2006) e Doutor (2012) em Sociologia pela Unicamp. Atuou, como Professor Colaborador, na Universidade Estadual de Londrina e na Unesp-Marília. Tem experiência de ensino e pesquisa nas áreas de Sociologia e Ciência Política, com pesquisas principalmente relacionadas aos seguintes temas: trabalho, classes sociais, classes médias, Estado e classes dominantes, teoria sociológica, terceirização e sindicalismo. Atualmente, é diretor do Centro de Estudos Marxistas (Cemarx/IFCH). E-mail: saviomc@unicamp.br.

COMO CITAR ESSE TEXTO

CAVALCANTE, Sávio. Por que a terceirização é considerada uma forma de precarização do trabalho? Revista Coletiva, Recife, n. 19, maio.jun.jul.ago. 2016. Disponível em: <https://www.coletiva.org/dossie-precarizacao-e-trabalho-por-que-a-terceirizacao-e-uma-forma-de-precarizacao-do-trabalho>. ISSN 2179-1287.

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