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Precarização e sindicalismo: antigos problemas, novos desafios

Ariovaldo Santos

Popularizada a partir dos anos 1970, ganhando o caráter de conceito para exprimir as transformações negativas para o trabalho no âmbito da expansão mais recente do capitalismo, a precarização é fenômeno mais antigo. Se um ponto une a formulação mais recente do pretendido estatuto conceitual que se busca fornecer à precarização, remetida ao trabalho, àquela que havia se configurado no século XIX, este refere-se ao fato de que quanto mais as forças produtivas do capital se desenvolveram, maior foi, também, o grau de degradação humana que se verificou no trânsito do século XIX para o XX e deste para o XXI. Os exemplos poderiam ser relacionados às centenas, mas uma expressão síntese destes pode ser localizada na existência hoje, no mundo, de mais de um bilhão e quinhentos milhões de indivíduos vivendo com menos de um dólar por dia, segundo dados oficiais.

Embora utilizada com fartura na literatura recente, a palavra precarização, unida em geral àquela do trabalho, adentra ao cenário teórico já no século XIX, seja direta, ou indiretamente. Quando discute em seu livro “Princípios do Comunismo” o que diferenciam o escravo, o servo da Idade Média e o proletário, o autor alemão Friedrich Engels está pautando a discussão sobre a precarização do ser que trabalha, mostrando sua universalidade e particularidade dentro da sociedade de classes. Porém, é incisivo em afirmar que dos três tipos de trabalhadores é o primeiro que se encontra em situação mais desfavorável. Quadro que se acentua com o desenvolvimento da grande indústria. Por outras palavras, o desenvolvimento do capitalismo industrial foi decisivo para o incremento da precarização do trabalhador.

Significativa em relação a isto é a afirmação desenvolvida em outro texto, de autoria de Karl Marx e assinado também por Engels, “O Manifesto do Partido Comunista”, na qual é mais transparente ainda a vinculação entre precarização e grande indústria. Afirmam os autores:

Porém a grande indústria, em seu desenvolvimento, não apenas acrescenta o número de proletários, mas os concentra também em massas consideráveis; sua força aumenta e adquirem maior consciência da mesma.

 

Os interesses e as condições de existência dos proletários se igualam cada vez mais à medida que a máquina vai eliminando as diferenças no trabalho e reduz o salário, quase em todas as partes, a um nível igualmente baixo. Como resultado da crescente concorrência dos burgueses entre si e das crises comerciais que ela ocasiona, os salários são cada vez mais flutuantes; o constante e acelerado aperfeiçoamento da máquina coloca o operário em situação cada vez mais precária.

                                                                        

Porém a grande indústria, em seu desenvolvimento, não apenas acrescenta o número de proletários, mas os concentra também em massas consideráveis; sua força aumenta e adquirem maior consciência da mesma. Os interesses e as condições de existência dos proletários se igualam cada vez mais à medida que a máquina vai eliminando as diferenças no trabalho e reduz o salário, quase em todas as partes, a um nível igualmente baixo. Como resultado da crescente concorrência dos burgueses entre si e das crises comerciais que ela ocasiona, os salários são cada vez mais flutuantes; o constante e acelerado aperfeiçoamento da máquina coloca o operário em situação cada vez mais precária.

Observa-se, na referida passagem, que no âmbito do pensamento marxiano, no século XIX, a palavra precarização possuía um sentido mais abrangente, uma vez que busca apreender a degradação da força de trabalho no plano físico e mental. O trabalho é precário, dentro desta leitura, em razão de que a grande indústria, ao simplificar as atividades a serem desenvolvidas pelos assalariados, transformava-os em apêndices da máquina, reduzindo o ser explorado pelo capital à condição de um ser atrelado a atividades monótonas, mecânicas e repetitivas.

Esta dimensão não desapareceu no capitalismo contemporâneo, malgrado as diversas análises que têm insistido na tese da qualificação da força de trabalho ou mesmo da perda da centralidade do trabalho. Assim, reconhecer que conquistas foram estabelecidas pelos trabalhadores através de seus embates cotidianos, mediados ou não pela instância sindical, está distante de significar que a precarização do trabalho tendeu para o desaparecimento com o incremento das forças produtivas do capital ou intensificação do trabalho subordinado à máquina e seus contínuos aprimoramentos. Ilusões que se acrescem em razão de uma vasta literatura que surgiu nas últimas décadas a respeito do chamado Welfare State e seus benefícios para os trabalhadores.

Sinal marcante de persistência da precarização é a formação das organizações sindicais, nas primeiras décadas do século XIX na Europa, e sua expansão aos diversos países fora do Continente europeu nas décadas subsequentes. O quanto precarização do trabalho e sindicalismo se entrelaçam na história das lutas da classe trabalhadora a partir da constituição do modo de produção capitalista é mais uma vez assinalado por Marx ao observar que:

o constante e acelerado aperfeiçoamento da máquina coloca o operário em situação cada vez mais precária; as colisões entre o operário individual e o burguês individual adquirem cada vez mais o caráter de colisões entre duas classes. Os operários começam a formar coalizões contra os burgueses e atuam em comum para a defesa de seus salários. Chegam até a formar associações permanentes para assegurar os meios necessários, em previsão destes choques eventuais. […] Às vezes os operários triunfam; porém é um triunfo efêmero. O verdadeiro resultado destas lutas não é o êxito imediato, e sim a união cada vez mais extensa dos operários.

Seria um equívoco, no entanto, considerar que de seu nascimento até os dias de hoje os sindicatos tenham se mantido os mesmos nas diversas fases de desenvolvimento do capitalismo e, mais particularmente, naquela representada pelo capitalismo monopólico. Certamente, eles continuam a se apresentar como representantes dos interesses imediatos, mais contingentes envolvendo as categorias profissionais. Porém, no transcurso do século XX, tendência que vem se aprofundando nestas primeiras décadas do XXI, os sindicatos reconfiguraram tanto seu pano ideológico quanto o tático-estratégico para responderem aos avanços da denominada precarização do trabalho.

Atente-se, inicialmente, para o enfraquecimento das propostas mais radicalizadas que marcavam o movimento sindical no século XIX. Das lutas sindicais daquele período nasceram tentativas frustradas de transformação social e a compreensão dos interesses antagônicos envolvendo o trabalho e o capital. Perspectiva que vai se revertendo progressivamente durante o século XX à medida que os sindicatos se institucionalizam.

 

O tema da precarização deixa de ter a dimensão abrangente que anteriormente possuía para restringir-se, basicamente, à luta por melhores salários e condições de trabalho. Soma-se a isto que embora o combate à precarização da força de trabalho continue no horizonte das lutas cotidianas dos sindicatos, até mesmo intensificando-se no âmbito do capitalismo mundializado, as organizações essencialmente categoriais passaram a tratar o tema cada vez mais no sentido de manutenção de uma força de trabalho saudável e vivendo em condições minimamente aceitáveis, com o termômetro dos avanços e recuos sendo dados pelo incremento ou redução do consumo individual.

Observe-se, ainda, que o debate sobre precarização por parte das organizações sindicais, ganhou vulto a partir dos anos 1970, com mais uma das grandes crises do capital, perdeu em horizonte transformador uma vez que passou a adotar-se, fundamentalmente, como referencial, a desestruturação das condições jurídicas de exploração da força de trabalho.

Por este caminho, isto é, o da leitura jurídica da precarização, tem-se estabelecido uma discussão que busca refletir mais sobre o emprego do que o trabalho propriamente dito. É evidente, na literatura recente, que o foco de atenção não é o trabalho como mediação ineliminável para a vida do ser social e sim as formas de sua exploração pelo capital. O trabalhador, neste sentido, é visto como sujeito à precarização não porque dele se extrai a força de trabalho e sim em razão de que esta extorsão se faz cada vez mais via enfraquecimento da proteção social e jurídica que ele deveria possuir.

 

Desse modo, há de se notar que o debate contemporâneo tem atentado substancialmente para a forma e não para a essência da utilização da força de trabalho pelo capital. O que está em pauta cada vez mais, e tem sido alimentado inclusive pelos sindicatos dos diversos continentes em suas tendências hegemônicas, isto é, propositivas ou de concertação social, não é o debate sobre a essência da exploração da força de trabalho e caminhos para superá-la, mas sim os mecanismos necessários para regulá-la.

Mesmo que marcado por debilidades, é necessário considerar que o distanciamento da compreensão do caráter do trabalho assalariado em sua essência e a aproximação a uma leitura mais restrita, aquela que fica presa basicamente ao uso da força de trabalho e suas formas jurídicas, a frequência com a qual a temática da precariedade vem à tona é sintomática da corrosão que vem atingindo os pilares sociais do atual modo de produção.

 

O capital se revela cada vez mais incapaz de manter arranjos institucionais que lhe serviram de base no período do pós-guerra e que se expressaram, no caso dos países do capitalismo avançado, sob a forma do que a literatura vem chamando por sociedade salarial. Arranjos suficientemente fortes para produzirem uma dupla ilusão. De um lado, a de que poderiam ser reproduzidos indefinidamente. De outro, a aparência de que poderiam ser universalizados para o eixo periférico do capitalismo desde que as mesmas condições institucionais e a “modernização” de suas estruturas econômicas fossem efetivadas.

O quanto o debate sobre precarização tem sido restringido à esfera jurídica é possível de se observar, por exemplo, no texto “Les différentes approches de la précarité de l’emploi en Europe, au Japon et aux États-Unis” (2005), da sócioeconomista francesa Carole Tuchszirer, o qual acentua elementos que vimos assinalando:

Mesmo que a emergência do conceito de precariedade seja anterior à crise do emprego de meados dos anos 1970, não permanece um fato menor que é depois deste período que a questão ganha novamente a superfície no debate social. Desde os primeiros efeitos da crise, a vontade de tornar mais leve o código de trabalho para responder às necessidades supostas da flexibilidade das empresas se traduz por uma expansão do que durante muito tempo se qualificou por ‘novas formas de emprego’. Ao modelo de emprego padrão veio se ajuntar uma gama de empregos que não são ainda designados no final dos anos 1970 como empregos precários, mas como empregos “atípicos”, significando assim que eles permanecem restritos a um segmento particular do salariato, da qual a figura dominante permanece o assalariado a tempo pleno e a duração indeterminada.

Para os sindicatos, desde há muito tempo coagidos a fornecer uma resposta ao problema da precarização, o drama se vê acrescido por algo que a intensifica, isto é, o desemprego tornado estrutural à própria ordem do capital. Neste sentido, são significativos os elementos apresentados pelo filósofo húngaro István Mészáros, em seu livro “A Educação para Além do Capital”, ao resgatar que:

Ironicamente, o desenvolvimento daquele que é de longe o mais dinâmico sistema produtivo da história culmina por proporcionar (rendering) um número cada vez maior de seres humanos supérfluos para a sua maquinaria de produção, embora — de acordo com o caráter incorrigivelmente contraditório do sistema — longe de supérfluos como consumidores. A novidade histórica do tipo de desemprego no sistema globalmente realizado é que as contradições de qualquer parte específica complicam e agravam o problema em outras partes e, consequentemente, no todo. Pois a necessidade de produzir desemprego, “downsizing”, etc., necessariamente levanta-se dos imperativos antagônicos do capital de perseguir o lucro e acumulação ao qual não pode concebivelmente renunciar, nem tão pouco conter-se de acordo com princípios de satisfação racional e humana. O capital ou mantém o seu inexorável impulso em direção aos objetivos de auto-expansão, não importa quão devastadoras sejam as consequências, ou deixa de ser capaz de controlar o metabolismo social da reprodução. Aqui não pode haver qualquer meio-termo ou mesmo a mais ligeira atenção a considerações humanas. Eis porque pela primeira vez desde sempre na história ascende um sistema dinâmico — e em suas implicações finais dinamicamente destrutivo — de controle social metabólico auto-expansivo, o qual expele brutalmente, se necessário, a esmagadora maioria da espécie humana do processo de trabalho. Este é o significado profundamente perturbante de “globalização”.

Diante da diversidade de formas de ofensividade do capital os sindicatos são confrontados aos limites da própria estratégia que adotaram desde suas origens e são obrigados a reconstruir sua agenda de ação. Circunscritos de longa data à defesa dos trabalhadores estáveis, isto é, aqueles dispondo de contratos com duração indeterminada, marca do ciclo expansivo do capitalismo do período posterior à Segunda Guerra mundial, as organizações sindicais se revelam, hoje, limitadas para responder ao desenvolvimento das novas formas de emprego e exploração da força de trabalho. Confrontam-se a uma questão central: como se colocar enquanto agentes de mobilização das categorias da população que participam na vida econômica em condições cada vez mais degradadas de emprego?

Uma retomada do ciclo ofensivo tem se revelado de difícil construção dada a instabilidade dos empregos que têm se expandido no mundo do trabalho contemporâneo. Isto não quer dizer que ações de resistência tenham desaparecido do horizonte, mas elas encontram-se geralmente presas ao âmbito da luta corporativista incorporada aos próprios sindicatos. Algumas lutas de resistência mais radicalizadas que ocorrem de tempos em tempos continuam a servir para trazer à tona que os interesses antagônicos entre capital e trabalho persistem. Porém, elas têm sido incapazes de produzir um movimento mais amplo de dimensões nacionais, uma vez que o internacionalismo tem sido apenas discursivo.

Para isso tem contribuído o esgotamento do propositivismo sindical ou sindicalismo de concertação social. Relativamente eficaz nos períodos em que o capital mergulhou em um ciclo expansivo sem precedentes, como é o caso da conjuntura que se abriu para vários países com o término da Segunda Guerra mundial, esta estratégia revelou seus amplos limites no momento em que os programas socialdemocratas começaram a sucumbir diante da retomada das propostas neoliberais.

Além disso, diversos estudos produzidos no continente europeu têm acentuado uma outra frente de dificuldades para as organizações sindicais. Na medida em que as formas de contratação se tornaram mais flexíveis, abriu-se um novo campo de debilidade para as diversas organizações uma vez que se revela extremamente dificultoso organizar os trabalhadores que se encontram, por exemplo, com contratos temporários de trabalho e que, portanto, temem uma aproximação com os sindicatos por receio de não serem requisitados, futuramente, para outros empregos nas mesmas condições. Tendência que se acentua uma vez que persiste, entre os temporários ou instáveis no emprego a perspectiva de ascenderem, nos tempos que correm, a um emprego dispondo de estabilidade e proteção jurídica ampla.

Enquanto que as formas de trabalho temporário se pulverizam, colocando novos problemas aos sindicatos, os mesmos se veem cada vez mais na necessidade de atrair a atenção das camadas mais jovens de trabalhadores, em geral arredios a esta forma de organização, contrariamente ao que acontecia a seus pais e avós. Com a intensificação das péssimas condições de trabalho e emprego, mobilizar estas camadas da classe trabalhadora constitui um desafio para o qual os sindicatos ainda não aportaram elementos adequados de resposta.

PARA SABER MAIS

BIBES, Geneviève; MOURIAUX, René. Les Syndicats à l’Épreuve. Paris: Presses de la Fondation Nationale dês Sciences Politiques, 1990.

BIHR, Alain. A Fragmentação do Proletariado. In: ______. Da Grande Noite à Alternativa. São Paulo: Boitempo Editorial, 1998.

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MARX, K. Salario, precio y ganacia. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras Escogidas. Vol. 2. Moscou: Editorial Progreso, 1974.

MARX, K.; ENGELS, F. El Manifesto del Partido Comunista In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras Escogidas. Vol. 1. Moscou: Editorial Progreso, 1974.

MÉSZÁROS, István. A Educação para Além do Capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005.

MORVILLE, Pierre. Lês Nouvèlles Politiques Sociales du Patronat. Paris: La Découverte, 1985.

MOURIAUX, René. Les Syndicats Européens et la Crise. Grenoble: Presses Universitaires de Grenoble, 1981.

SANTOS, Ariovaldo. Dicionário Sindical e do Trabalho. Londrina: EDUEL, 2014.

SANTOS, Ariovaldo. A Nova Crise do Sindicalismo Internacional. In: ANTUNES, Ricardo (org.). Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006.

SANTOS, Ariovaldo. Redução de Jornada de Trabalho e Sindicalismo: nos Limites do Propositivo. In: BATISTA, Roberto Leme; ARAÚJO, Renan (Orgs.). Desafios do Trabalho: Capital e Luta de Classes no Século XXI. Maringá: Editora Práxis, 2003.

SILVER, Beverly J. Forças do Trabalho: movimentos de trabalhadores e globalização desde 1870. São Paulo, Boitempo Editorial, 2005.

TUCHSZIRER, Carole. Les différentes approches de la précarité de l’emploi en Europe, au Japon et aux États-Unis, Chronique Internationale de l’IRES, Paris, n. 97, nov. 2005.

O AUTOR

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Ariovaldo Santos é mestre Ciência Política pela universidade Estadual de Campinas (1992), possui Diplome d’Études Approffondies em Politique Comparée (1994) pela Université Paris I e Doutorado em Sociologie et Sciences Sociales (1997) pela université Paris I (Panthéon Sorbonne). É autor, entre outros, de O Financiamento Sindical e outros estudos (Editora Praxis, 2013) e Dicionário Sindical e do Trabalho (Eduel, 2014). Integra o departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina (UEL-PR).

COMO CITAR ESSE TEXTO

SANTOS, Ariovaldo. Precarização e sindicalismo: antigos problemas, novos desafios. Revista Coletiva, Recife, n. 19, maio.jun.jul.ago. 2016. Disponível em: <https://www.coletiva.org/dossie-precarizacao-e-trabalho-n19-precarizacao-e-sindicalismo-antigos-problemas-novos-desafios>. ISSN 2179-1287.

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