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Os protestantes e o pluralismo religioso

Lyndon Santos

Qual foi o papel e o lugar dos protestantes para a diversidade de crenças religiosas no Brasil? Essa pergunta pode ser respondida olhando, a partir do nosso presente, para os acontecimentos que se deram desde a proclamação da República, em 1889, até a revolução de 1930, com Getúlio Vargas. Nessa época, o Brasil já era, de certa forma, um país plural e importantes mudanças acentuaram, de lá para cá, essa pluralidade.

Para entender o pluralismo religioso daquele tempo, precisamos compreender inicialmente outras dimensões igualmente plurais que atuaram junto com as crenças religiosas.

As Ideias e as Pessoas

 

Nas décadas finais do Império, a força de ideias como o positivismo e o liberalismo levou ao fim da monarquia, ao lado de interesses políticos e econômicos. A monarquia, por sua vez, também não andava nada bem! Estava desgastada com a crise da economia baseada na mão-de-obra escrava e na grande propriedade açucareira. E, embora sendo popular entre os mais pobres, era duramente criticada pelas elites e pelas classes médias. A corrupção era uma das principais críticas utilizadas para desmobilizar o trono de D. Pedro II.

Contudo, essas ideias não agiam soltas. Elas pertenciam a pessoas, a grupos e a instituições sociais que foram responsáveis pela sua recepção e divulgação. Elas legitimaram os seus interesses e os seus projetos políticos. Assim, o exército e a maçonaria, por exemplo, propagaram o positivismo, que defendia uma ordem política centralizada e forte, e o progresso que viria pela ciência, pela indústria e pela utilização das tecnologias.

Os plantadores de café paulistas queriam mais liberdade para exportar, conseguir empréstimos e trazer imigrantes para as suas fazendas, embora com a proteção e o aval do governo. As camadas mais letradas, como os profissionais liberais, os juristas, os médicos e os jornalistas, defendiam a república no lugar da monarquia. Os poucos industriais queriam mais condições para produzir e menos taxação para importar e exportar.

A maioria do povo, porém, vivia sem as suas necessidades básicas plenamente atendidas como educação, saúde e moradia. A massa de negros ex-escravos continuou explorada sob o peso do racismo. E, depois da abolição em 1888, experimentou novos modos de exploração quando se espalhou para as periferias, os morros e os subúrbios. Tanto no campo como na cidade os descendentes africanos recebiam remunerações menores que outros trabalhadores. As populações urbanas se viravam como podiam com trabalhos temporários, os bicos, ou tentavam um emprego público por alguma indicação. Surgiu uma classe operária composta também de imigrantes com ideias anarquistas e socialistas. Ela foi responsável pelas primeiras paralizações e greves como as de 1903, 1906 e 1917.

A monarquia que era um obstáculo, juntamente com o escravismo, acabou. Os agricultores paulistas conseguiram o controle do estado depois das crises iniciais de afirmação da república com Deodoro e Floriano (1889 a 1898). As oligarquias de São Paulo e Minas Gerais dominaram o poder executivo até 1930.

Contudo, não foram somente essas ideias ligadas a grupos que trouxeram mudanças na direção de uma sociedade plural. Outros processos como o cultural e o religioso contribuíram para a pluralidade no período após a proclamação da República.

“EM CADA ESQUINA, UMA RELIGIÃO"

 

Essa foi a frase do jornalista carioca João do Rio que, depois de percorrer as ruas da capital da República observando os cultos diferentes das suas esquinas, escreveu um interessante livro intitulado “As Religiões do Rio” (1906). Esse livro bem poderia ser ampliado para as outras principais cidades e capitais do Brasil. Pois, os centros urbanos em expansão concentravam diferentes práticas religiosas, igrejas, templos, sinagogas, terreiros, capelas, oratórios, encruzilhadas, altares e centros. Da mesma forma, nos interiores do país, as práticas religiosas eram diversas e permaneciam diretamente ligadas à natureza.

Essa realidade trazia as práticas culturais dos portugueses, africanos e indígenas desde os tempos coloniais. Entretanto, cada raça assim definida também era misturada e não possuía uniformidade. Africanos e indígenas, por exemplo, representavam múltiplas etnias com suas singularidades locais de origem. E portavam distintos elementos, costumes, visões de mundo, línguas e narrativas. Por isso, não podemos simplificar as origens do pluralismo brasileiro com base em três raças, pois essa palavra esconde um cenário mais complexo.

Com respeito especificamente às religiosidades, a população praticava, sobretudo no dia a dia, uma riqueza de devoções misturadas. Eram as mandingas, as pajelanças, as beberagens, as festas, os rituais, os terreiros, as promessas, os votos, as procissões, as rezas, os trabalhos e as benzeções. Além dessas crenças e formas de devoção, novas doutrinas chegaram, como o protestantismo e o espiritismo, cada um com as suas peculiaridades de doutrinas e de práticas. Ou seja, embora o país fosse católico romano de confissão em sua maioria, a população reinventava o padrão colocado – senão imposto – pela Igreja Católica.

O catolicismo havia sido a religião oficial no império (1822 a 1889). Por um lado, detinha a posição de influência no espaço público; por outro, definia valores e modelos para a vida privada, sobretudo a família e a sexualidade. Os seus sacerdotes atuavam dentro e fora da sacristia como políticos, professores, escritores e até como ativistas políticos. A própria geografia das cidades foi definida pela posição dos templos católicos. O calendário civil era, e ainda é, organizado com base nas datas religiosas católicas.

É preciso, entretanto, levar em conta também que essa Igreja era internamente plural com intensos conflitos entre ultramontanos e regalistas. Bispos e padres preocupados com a sua situação queriam uma igreja menos nacional, mais pura na moralidade e mais romanizada (na liturgia, na linguagem, na teologia e nos dogmas). Esse segmento do clero entrou em conflito com os regalistas, ou seja, os que queriam uma igreja mais nacional e distante do Vaticano. Entraram em conflito também com os padres ligados à maçonaria gerando uma crise cujo auge foi a chamada Questão Religiosa.

Esses conflitos internos foram paralelos com a proclamação da república, quando o Estado se separou da Igreja Católica, depois de quase quatro séculos unidos pelo regime do padroado. A constituição de 1891 instituiu o estado laico, ou seja, a religião não mais determinaria as suas ações, as suas políticas e sairia da sua burocracia e da sua administração. Além disso, pelo menos na teoria, ele passaria a garantir a liberdade religiosa por parte da sociedade civil, sem favorecer a nenhuma religião específica.

Contudo, a Igreja Católica se readaptou aos novos tempos, agora separada do Estado e lançada à concorrência de novos cultos.

OS BODES E OS BÍBLIAS

Essa concorrência incluiu diretamente os protestantes com suas diferentes igrejas, denominações e organizações. Desde o início do século XIX, já havia protestantes no Brasil ocupando as fronteiras do centro sul, como os alemães luteranos e os ingleses nas atividades comerciais e bancárias nas capitais. O acordo comercial de 1810 entre Portugal e Inglaterra favoreceu a vinda de anglicanos e a constituição do império de 1824 permitiu a tolerância para com os cultos acatólicos.

Mais tarde, missionários metodistas fizeram tentativas nos idos de 1840 de fixar igreja, mas sem sucesso. Em 1855, o médico escocês Robert Reid Kalley e sua esposa Sarah Kalley radicaram-se no Rio de Janeiro e permaneceram até o ano de 1876. Além de fundarem igrejas independentes no Rio de Janeiro, Niterói e Recife, os Kalley tiveram uma atuação significativa para o vir a ser de uma sociedade mais plural. Isso se deu por meio de escritos na imprensa secular com traduções, artigos apologéticos, traduções de hinos e debates em torno da liberdade religiosa, do casamento e do enterramento dos acatólicos. Em 1859, em função de uma perseguição religiosa a protestantes na cidade de Petrópolis, Kalley recorreu a três juristas sobre a liberdade religiosa, repercutindo nos jornais e na câmara dos deputados.

Congregacionais, Presbiterianos, Batistas, Metodistas e Episcopais se estabeleceram inserindo a alternativa de cristianismo de linhagem reformada. Adventistas e Testemunhas de Jeová, bem como outros grupos religiosos protestantes, também formaram suas comunidades e instituições. Entre 1907 e 1911, foram os pentecostais da Congregação Cristã do Brasil e das Assembleias de Deus que se estabeleceram desde São Paulo e Belém. Além dessas igrejas mais conhecidas, grupos independentes surgiram como expressão de um protestantismo da mesma forma plural em suas vivências.

Os pentecostais trouxeram a direta experiência com o Espírito Santo com a evidência do falar em outras línguas, uma liturgia mais participativa e uma pregação mais simples. Formaram comunidades pobres e solidárias, onde o corpo e as emoções tinham a primazia sobre o discurso mais racionalizado dos demais protestantes. Dessa forma, na sua origem, aproximaram-se mais das práticas religiosas dos terreiros.

Esse conjunto de igrejas e de denominações introduziu no campo religioso brasileiro outras linguagens sobre o sagrado, a partir de suas doutrinas e práticas de origens europeia e norte-americana. Fundaram escolas, associações, jornais e hospitais. Distribuíram Bíblias impressas pelas Sociedades Bíblicas e uma diversidade de literatura evangélica por meio dos colportores ou dos mascates da fé. Esses eram missionários ambulantes que vendiam literaturas nas ruas, evangelizando e tirando dessa atividade o seu sustento. Os adeptos ou convertidos eram oriundos em sua maioria das camadas mais simples, mas, aos poucos, pessoas das classes médias foram aderindo à fé reformada. A exigência da leitura da Bíblia como livro sagrado e instrumento de contato com Deus favoreceu à alfabetização.

Na ação e no discurso dessas igrejas e dos seus missionários havia uma forte crítica à Igreja Católica, à permissividade moral da cultura e aos cultos de origens africanas. Essa postura resultou em oposições, críticas e conflitos, entendidos pelos protestantes, apelidados de os bíblias e os bodes, como sendo perseguições. Entretanto, os antagonismos recíprocos serviram como meio de afirmação das diferenças e das identidades religiosas. A demonização dos cultos afro servia como estratégia de negação e de diminuição das suas entidades. A incidência desses comportamentos demonstra que as intolerâncias já estavam presentes em nossa história religiosa.

A república foi saudada como uma grande conquista para o avanço protestante. Pois, a liberdade religiosa e o estado laico eram bandeiras da sua pregação. Por causa disso, os protestantes estiveram ao lado de maçons, de positivistas e de republicanos nas críticas à monarquia e ao domínio católico romano. Se, por um lado, os protestantes saudaram a laicidade do estado e a liberdade religiosa, por outro, radicalizaram a crítica a qualquer associação com alguma religião.

Esse foi o caso da polêmica sobre O Christo no Jury, levantada pelo pastor da Igreja Evangélica Brasileira, o maranhense Miguel Vieira Ferreira. Ao ser convocado para compor o corpo de jurados no tribunal no Rio de Janeiro, ele se negou a entrar num espaço que tivesse símbolos religiosos. Ferreira atingia, assim, os crucifixos católicos presentes nas instituições públicas. No entanto, o desfecho demonstrou o quanto não seria fácil demover tais símbolos e a força do catolicismo ultrapassava, nesse caso, aos argumentos modernos.

A disseminação tanto de ideias quanto de discursos e de práticas pelos protestantes na Primeira República contribuiu, ao lado de outros movimentos religiosos, para a consolidação da pluralidade religiosa. Mesmo sendo minoria, os protestantes souberam organizar suas instituições e se espalharam pelos mais variados lugares do país. Polemizaram com os católicos, criticaram práticas como o carnaval e definiram a educação como um meio para, ao mesmo tempo, evangelizar e civilizar. O empenho para a expansão religiosa deixou de lado outras questões sociais como as lutas dos trabalhadores, dos negros e das massas empobrecidas. No entanto, foi dessas camadas que veio a maior parte dos seus adeptos.

O AUTOR

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Lyndon Santos é doutor em História pela UNESP (2005), possui pós-doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFF. Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Integra o quadro de pesquisadores dos Programas de Pós-Graduação em História e de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFMA, Coordena o GPHR - Grupo de Pesquisa História e Religião. Desenvolve pesquisas nas áreas de História e Ciências Sociais, com ênfase nos estudos do campo religioso brasileiro, atuando principalmente nos seguintes temas: história das religiões e religiosidades, história cultural e teoria da história.

COMO CITAR ESSE TEXTO

SANTOS, Lyndon. Os protestantes e o pluralismo religioso. Revista Coletiva, Recife, n. 21, jan.fev.mar.abr. 2017. Disponível em: <https://www.coletiva.org/dossie-pluralismo-religioso-n21-os-protestantes-e-o-pluralismo-religioso>. ISSN 2179-1287.

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