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As fronteiras borradas entre peregrinação e turismo

Carlos Alberto Steil

A distinção entre peregrinação e turismo tem sido marcada pela divisão entre sagrado e profano, que estaria na base de todas as sociedades e grupos humanos que habitam o nosso planeta. Essa divisão tem servido para situar os peregrinos do lado sagrado e os turistas do lado do profano.

 

Nosso objetivo, neste artigo, será o de borrar um pouco essa fronteira e mostrar que esse princípio universal de classificação deixa escapar de nosso foco de análise as semelhanças que existem entre essas práticas. Numa perspectiva histórica, podemos observar que muitos lugares que outrora eram tidos como sagrados e atraíam grande número de peregrinação transformaram-se em destinos turísticos.

 

Como exemplo, poderíamos citar o centro da cristandade ocidental – Roma – que foi um ponto, por excelência, de atração de peregrinos no passado e que hoje é um dos principais destinos turísticos do mundo. Não apenas a peregrinação e o turismo se sobrepõem, hoje, no espaço geográfico desta cidade, mas as motivações que levam as pessoas a Roma se confundem, assim como suas práticas tendem a conciliar atitudes e rituais de reverência em relação ao sagrado, materializado em igreja, túmulos, praças e imagens com o olhar externo e distanciado do turista que contempla esses marcos da fé católica como referências históricas e seculares.

Entre os numerosos peregrinos que, no passado, se dirigiam para os grandes centros de peregrinação da cristandade, alguns não estavam imbuídos de motivos piedosos. Assim como, hoje, não se pode afirmar que aqueles que se dirigem para Roma, como turistas, também não se sintam atraídos por motivos religiosos, ainda que muitas vezes velados ou latentes.

 

Essa sobreposição de motivações religiosas e seculares parece ser uma constante na experiência dos peregrinos em todos os tempos e lugares.

O OLHAR DO CIENTISTA SOCIAL SOBRE A PEREGRINAÇÃO E O TURISMO 

A aproximação entre peregrinação e turismo esteve presente desde os primeiros estudos sobre turismo nas ciências sociais. Assim, o antropólogo britânico Nelson Graburn, um dos pioneiros dos estudos de turismo, parte da experiência do peregrino para falar do turista.

Para ele, haveria uma homologia entre estas experiências, na medida em que ambas se instituem como momentos extraordinários em relação à vida cotidiana, conferindo a ambas um sentido sagrado.

 

Nesse mesmo sentido, a diversidade das motivações e de estilos de vida encontrada pelos também britânicos Victor e Edith Turner entre os sujeitos que acorrem para os grandes santuários cristãos por eles estudados, os levaram a afirmar que “todo turista é meio peregrino e todo peregrino é meio turista”.

O sociólogo israelita Erik Cohen, por sua vez, desenvolve a ideia de um continuum entre o peregrino e o turista, onde a busca do sagrado – característica do peregrino – se transforma, no turista, na busca da autenticidade. Na sua perspectiva, não se pode falar nem de um peregrino nem de um turista homogêneos, porque estas experiências estariam sempre hibridizadas na forma de um “peregrino-turista ou de um turista-peregrino”.

 

Os dados etnográficos, levantados por Cohen, por outro lado, mostram que, apesar deste caráter híbrido, é possível distinguir peregrinos e turistas em termos da ênfase que cada um dá ao sentido da viagem. Enquanto o peregrino vai em busca de si, o turista se moveria em busca do outro.

A ideia de uma continuidade entre peregrinação e turismo e sua relação com o sagrado e com o profano também aparece nos estudos de Rachid Amirou, na França. Esse autor, no entanto, inverte os polos do sagrado e do profano em relação à peregrinação e ao turismo respectivamente.

 

Nesse sentido, ele aproxima o turismo do sagrado, ao mesmo tempo em que procura mostrar a dimensão profana e festiva da peregrinação. Na sua perspectiva, a peregrinação e o turismo seriam categorias que condensariam, em si, múltiplos significados, muitas vezes divergentes, que lhe conferem densidade e poder de mobilizar multidões.

PEREGRINAÇÃO E TURISMO COMO ESTILOS DE VIDA 

Estes estudos acima referidos procuram romper com um olhar evolutivo que tende a ver o turismo como resultado de processo mais abrangente e inexorável de secularização. Nesta perspectiva, os lugares de peregrinação estariam destinados a se tornarem polos turísticos, na medida em que a modernidade se imporia como um processo de desencantamento do mundo.

 

A crítica a esta visão tem enfatizado que estes dois movimentos – do turista e do peregrino – não se apresentam como etapas num processo histórico unilinear, mas remetem a estilos e modos de se posicionar no mundo que coexistem e cujas fronteiras estão inevitavelmente borradas.

Um olhar em retrospectiva sobre a história da peregrinação e da viagem permite perceber que estas duas experiências podem ser pensadas sob a mesma categoria de mobilidade e deslocamento no espaço. E, neste sentido, as questões e os percalços que enfrentam quaisquer viajantes hoje são muito semelhantes àquelas que, noutros tempos, acometeram os peregrinos.

 

As descrições das peregrinações medievais no Ocidente, feitas por historiadores, revelam um contexto discursivo que tem muitas semelhanças com os debates contemporâneos sobre turismo, tais como o perigo da contaminação das populações hospedeiras, a disputa de mercado, a associação da viagem com licenciosidade e a excessiva valorização de alguns lugares sobre outros, como afirma a socióloga americana Judith Adller.

O historiador Collin Morris, por sua vez, lembra-nos que muitas das viagens realizadas por peregrinos na Idade Média não os retiravam de seus contextos cotidianos, visto que a maioria desses deslocamentos não envolvia longas viagens. Ao contrário, muitas das peregrinações medievais estavam inseridas numa rede de trocas e relações locais, sendo que as motivações religiosas eram tão importantes quanto as motivações comerciais. As pessoas empreendiam viagens que visavam tanto cumprir um voto religioso quanto adquirir produtos que podiam ser comercializados em seus locais de origem ou mesmo ao longo da viagem.

DO SACRIFÍCIO AO APERFEIÇOAMENTO DE SI

Tomando como referência o mesmo período histórico, outro historiador, Luigi Tomasi, aponta para o relativo declínio do discurso sacrificial, que esteve associado às peregrinações cristãs, e a ênfase que vem sendo dada à peregrinação como uma experiência de aperfeiçoamento de si. Essa mudança é concomitante com a inversão de foco do destino – um santuário, uma imagem, uma relíquia, etc. – para a experiência da viagem nela mesma. Mais do que o ponto de chegada, diz o sociólogo John Urry, o que passa a interessar aos peregrinos e viajantes é a própria mobilidade.

 

Nesse sentido, pode-se perceber um deslocamento do sagrado, da efervescência coletiva, para um sentido individual e pessoal do sujeito que se engaja corporal e psicologicamente na própria viagem em busca de um aperfeiçoamento individual. Na etnografia de Nancy Frey, “Pilgrims stories” (1998), sobre o Caminho de Santiago, na Espanha, a chegada e a estada no santuário não é o que conta, mas o caminho em si. A chegada surge, no texto de Frey, como um anticlímax.

Essa ênfase no caminho parece ser, hoje, uma marca das peregrinações contemporâneas, especialmente daquelas inspiradas no Caminho de Santiago de Compostela, que vemos surgir num movimento mimético noutras partes do mundo cristão. Segundo esse modelo, empreender uma jornada de longa distância, que envolve persistência e austeridade, é visto menos como um sacrifício em vista de uma graça a ser alcançada e mais como um processo de descoberta de si.

 

Assim, para além das formas específicas que este modelo pode assumir, configurando novos caminhos, também atua no sentido de reformular antigas peregrinações que, embora mantenham um formato tradicional, deixam-se penetrar pelos valores e motivações que são associados à experiência do percurso em si.

 

Enfim, trata-se de um modelo que enfatiza a própria caminhada em contraposição ao lugar de chegada ou ao objeto de devoção. Ao fazer esse deslocamento, acaba atribuindo um sentido central à forma como o caminhante se engaja pessoal e corporalmente na peregrinação. A forma corporal pela qual o peregrino empreende a viagem – a pé, em cadeira de roda, de bicicleta, de carro, de ônibus de excursão, etc. – é o que passa a contar realmente para a definição da autenticidade da peregrinação. Desse modo, a fronteira entre o sagrado e o secular que remeteriam à distinção entre peregrinação e turismo, torna-se irrelevante para a maioria daqueles que empreendem a caminhada.

No horizonte das peregrinações e do turismo, o movimento surge como a chave de compreensão das transformações que vêm ocorrendo tanto no campo do sagrado e da religião quanto das viagens e do turismo na sociedade contemporânea. Ao pôr o foco no movimento, damo-nos conta de que a peregrinação e o turismo nos conectam com algum ideal extraordinário, que se encontra fora do cotidiano, na medida em que nos impele a sair do lugar em que moramos e conduzimos nossas vidas.

 

Mas, esse ideal não precisa ser objetivado num lugar ou numa imagem. Ao contrário, o que de fato importa é o movimento em si, que, embora aconteça no espaço geográfico, apresenta-se como uma metáfora de uma viagem vertical para o interior de si.

PARA SABER MAIS

ADLLER, J. The holy man as traveler and travel attraction: early Christian asceticism and the moral problematic of modernity. In: SWATOS, T. From Medieval Pilgrimage to Religious Tourism: the social and cultural economics of piety. Westport: Praeger, 2002.

AMIROU, Rachid. Imaginaire Touristique et Sociabilités du Voyage. In: BALANDIER, G. Le Sociologue. Paris: Press Universitaires de France, 1995.

COHEN, E. Traditions in the qualitative sociology of tourism. Annals of Tourism Research, n. 15, v. 1, p. 29-46, 1988.

______. Pilgrimage and tourism: convergence and divergence. In: MORINIS, A. Journeys to sacred places. Wesport: Greenwood Press, 1992.

FREY, Nancy Louise. Pilgrim Stories: On and off the road of Santiago. Berkeley; Los Angeles and London: University of California Press, 1998.

GRABURN, Nelson. The sacred journey. In: SMITH, V. Hosts and guests: the anthropology of tourism. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1977.

MORRIS, C. Pilgrimage: the English experience from Becket to Bunyan. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.

TOMASI, Luigi. Homo viator: from pilgrimage to religious tourism via the journey. In: SWATOS, T. From Medieval Pilgrimage to Religious Tourism: the social and cultural economics of piety. Westport: Praeger, 2002.

TURNER, Victor; TURNER, Edith. Image and Pilgrimage in Christian Culture, Lectures on the history of religions. 11. Ed. New York: Columbia University Press, 1978.

O AUTOR

CARLOS ALBERTO STEIL.png

Carlos Alberto Steil é doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ (1995). Professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), coordenador do Núcleo de Cultura e Turismo (CulTus) e membro do Núcleo de Estudos da Religião (NER).

COMO CITAR ESSE TEXTO

STEIL, Carlos Alberto. As fronteiras borradas entre peregrinação e turismo. Revista Coletiva, Recife, n. 21, jan.fev.mar.abr. 2017. Disponível em: <https://www.coletiva.org/dossie-pluralismo-religioso-n21-as-fronteiras-borradas-entre-peregrinacao-e-turismo-carlos-stei>. ISSN 2179-1287.

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