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A Guerra de Canudos na visão de metodistas e presbiterianos paulistanos

Leonildo Silveira Campos

O clima de guerra em Canudos na verdade se instalou quando do início do próprio arraial, em 1893, numa fazenda abandonada às margens do rio Vaza-Barris, a 400 km de Salvador, no estado da Bahia. Ali, milhares de peregrinos, sob a liderança do místico e beato Antônio Conselheiro – Antônio Vicente Mendes Maciel (1830-1897) –, tentavam recomeçar a vida cujo cotidiano era marcado por secas, violências, fome e miséria. Os habitantes de Canudos, camponeses, ex-escravos e descendentes de indígenas, viam poucas saídas para a crise em que viviam: fanatismo religioso ou violência.

Essa ligação entre a formação do arraial, a centralidade do movimento ao redor de um místico, e a propensão para a violência, tem sido analisada como parte integrante de movimentos de conotação messiânico-milenarista. Mas, teria sido Canudos um movimento messiânico-milenarista? Teriam aqueles atores consciência de que faziam parte de uma comunidade de inspirados construtores do céu na Terra? Há controvérsias sobre o assunto. Porém, uma certeza, Canudos/Belo Monte foi além de tudo um movimento político-religioso que teve como motivação as frustrações, os sonhos e a esperança de milhares de camponeses nordestinos.

 

Esse sonho coletivo terminou no dia 5 de outubro de 1897, em um massacre inominável, que resultou em mais de vinte mil mortos; a cidadela queimada e dinamitada com milhares de cadáveres insepultos; centenas ou milhares de prisioneiros degolados por soldados ávidos de vingança; dezenas e dezenas de crianças (“jaguncinhos”) distribuídas como botim de guerra e levadas para longe do campo de batalha.

Os conflitos que deram origem à guerra começaram como um acontecimento local de rebeldia (1893) contra a cobrança de impostos determinada pelo novo regime – republicano – instalado por golpe militar em 1889. Havia, porém, a questão da fome e miséria, agravadas pela terrível seca de 1877; o deslocamento de milhares de pessoas para o Norte, em busca do milagre da borracha, e para o Sul, em busca de emprego nas indústrias ou plantações de café.

Canudos foi um fenômeno social, econômico e religioso, que se inscreveu dentro de um quadro político muito peculiar. Grandes fazendeiros, com interesses políticos divergentes entre si, mas bem representados em Salvador e na Capital Federal, uniram-se ao redor de uma só bandeira levantada contra um inimigo comum. Para a historiadora e pesquisadora de religiosidades Jacqueline Hermann, como afirma em seu artigo “Canudos destruído em nome da República – uma reflexão sobre as causas políticas do massacre de 1897” (1996), havia conflitos internos entre políticos republicanos e entre os próprios latifundiários baianos que se constituíram no motor da repressão empreendida contra Canudos. Assim, “a solução inconciliável desses conflitos precisou destruir Canudos para provar que, afinal, todos lutavam em nome da República”.

A Guerra de Canudos, a menos de dois anos de seu fim, deixou de ser um conflito local para se tornar uma questão nacional. Em 1895, o Conselheiro e os camponeses que o seguiam passaram a ser retratados pela mídia e burocratas do poder, sediado no Rio de Janeiro, como um perigo mortal para o novo regime. Foi, no entanto, após o fracasso da expedição comandada pelo legendário coronel Moreira Cesar que o país todo foi sacudido por um intenso ódio que se expressava numa só frase: Canudos est delenda.

Sobre a destruição da “Tróia de Taipa”, registrou Euclides da Cunha em seu “Os Sertões” (1963): “Canudos não se rendeu. Exemplo único na História resistiu até o seu esgotamento completo. Expugnado, palmo a palmo (…), caiu no dia cinco, no entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.”

A cobertura que os jornais seculares fizeram da Guerra de Canudos mereceu um alentado estudo da crítica literária brasileira Walnice Galvão, intitulado “No calor da hora: a guerra de Canudos nos jornais, 4ª expedição” (1994). No entanto, falta-nos uma análise da visão religiosa do conflito estampada em jornais católicos e protestantes. Para verificar, ainda que parcialmente, escolhemos dois jornais protestantes publicados em São Paulo naquela época: O Estandarte, dos presbiterianos e O Expositor Cristão, dos metodistas.

 

Neles, observamos que a reação protestante começou a ganhar corpo no decorrer das terceira e quarta expedições enviadas a Canudos. Por sua vez, a imprensa laica, que foi em grande parte responsável pela efervescência da opinião pública do país, enviou alguns jornalistas, na verdade, correspondentes de guerra, para a área de combate. Os artigos de Euclides da Cunha, enviados do front e publicados no jornal O Estado de S. Paulo, foram reescritos e incorporados no livro que iria tornar imortal o seu escritor.

Os argumentos usados pelos jornais para condenar Canudos à destruição usavam termos relacionados a um movimento de pessoas “incultas”, “ignorantes”, “fanatizadas”, “não civilizadas”, e “desordeiras”, que colocavam em perigo a República implantada oito anos antes. Walnice Galvão registrou que “o jornal era o mais eficiente veículo de comunicação de massa no Brasil do final do século XIX” e foi usado com muita eficiência. Resultou da ação jornalística a ideia que Canudos era um foco de monarquistas e que recebia armas e munição de outros países. Essas acusações, repetidas pelos jornais, calaram profundamente no imaginário coletivo do país. Todos foram seduzidos por elas, inclusive a opinião pública protestante, como atestam os dois jornais escolhidos para análise.

O protestantismo, no entanto, sempre defendeu a ordem, os valores ditos liberais e o progresso. Essa dificuldade ficou bem patente na posição de Lutero diante da Guerra Camponesa de 1525. Por outro lado, apesar de ter, o protestantismo, muitas vezes, lançado mão de armas para a sua própria defesa, e de ter nascido de uma ampla revolta contra a ordem político-religiosa, tão logo instalado numa zona de conforto, rapidamente passa ao culto da ordem e à pregação do respeito aos poderosos.

A violência da repressão contra o povoado de Canudos e seus habitantes foi um fenômeno que reuniu uma diversidade de atores. Além do líder e seus liderados, fizeram parte desse cenário os grandes latifundiários regionais, os políticos estaduais e federais, o clero católico romano, e, a chamado desses, o Exército brasileiro. A morte do coronel Moreira Cesar, em março de 1897, gerou uma comoção nacional e feriu o espírito de corpo do Exército. Como reação popular, houve agitação em várias capitais brasileiras e até o empastelamento dos jornais Apóstolo, Liberdade e Gazeta da Tarde, do Rio de Janeiro e do jornal O Comércio, de São Paulo.

O Estandarte (27/2/1897) noticiava que haviam chegado à região de Canudos tropas comandadas pelo coronel Moreira César para enfrentar “os fanáticos capitaneados pelo tristemente célebre Antônio Conselheiro, que pelos seus sucessivos e intermináveis crimes tantos males têm causado à paz e a ordem necessária do estado da Bahia e à República”. Para o jornal presbiteriano, o Conselheiro teria conseguido “impor-se como emissário divino à ignorância baixa dos sertanejos daquelas regiões (…) levantar ao seu redor um exército de mais de 10 mil homens que cegamente o obedecem, convictos de que se tombarem no campo do combate que travaram com as forças legaes, em breve ressuscitarão purificados no seio de suas famílias felizes (…).”

O fracasso da expedição comandada por Moreira Cesar foi registrado numa edição de O Estandarte (13/3/1897), que também noticiava, nesse mesmo número, a destruição da tipografia de jornais cariocas acusados de estarem apoiando a monarquia. O dono de um deles foi assassinado durante o tumulto no Rio de Janeiro, em um ato considerado pelos presbiterianos como “um patriotismo mal entendido” e expresso por atos que “depõem contra nossa civilização”.

Os jornais evangélicos compartilharam do “clamor nacional” que pedia a destruição de Canudos. Um bom exemplo disso pode ser encontrado em O Estandarte (20/3/1897), que apresentou um perfil do comandante dos seguidores do Conselheiro, João Abade, que na linguagem dos protestantes, não passava de um facínora transformado em “general dos fanáticos”, promovido sob a proteção do líder máximo do povoado. Os homens liderados militarmente pelo Abade, e espiritualmente pelo Conselheiro, não passavam de “degenerados” que estariam lutando confiados que, morrendo em combate, iriam conquistar o céu ou ressurgir logo em seguida “para a felicidade do santo e para a glória de seu chefe guerreiro”.

Os jornais religiosos, católicos ou protestantes, reproduziam as notícias fornecidas pela imprensa secular que não se cansava de pedir a destruição de Canudos. Por isso mesmo, quando a destruição se concretizou, quase nada foi dito sobre a violência imposta a milhares de pessoas pelos jornais, católicos, protestantes ou seculares. Imperou a mesma lógica jornalística existente nas demais publicações do período.

No jornal metodista, missionários americanos de confessada vocação republicana estavam à frente da publicação. Eles mantinham estreitas ligações com fazendeiros de Piracicaba, entre eles, os dois irmãos Morais e Barros. Um deles, Prudente de Morais, tornou-se o primeiro Presidente civil e foi o responsável pela ordem de destruição de Canudos. O Expositor Cristão (16/10/1897) assim saudou o fim da guerra: “Tomada de Canudos. Gloriosa notícia! Sentimos uma verdadeira alegria; nosso coração se expandiu de um gozo indizível e sentiu-se muitíssimo aliviado, quando soava a voz: Canudos caiu!”

O jornal dos presbiterianos de São Paulo, O Estandarte (9/10/1897), que pouco publicou sobre o assunto, registrou de forma mais comedida: “De coração nos associamos às festas que em todo o país estão sendo feitas pela tomada de Canudos e, consequentemente, pelo restabelecimento da paz em nossa pátria”. Nada se falava, na hora da festança, sobre o número de mortos que caucionava a “paz de cemitério”.

Quanto à violência indiscriminada contra a população de Canudos, os jornais evangélicos, assim como os seculares, não trouxeram nenhuma notícia sobre a morte de prisioneiros que foram eliminados após se entregarem, sob a palavra do comandante militar de que suas vidas seriam preservadas. Nessa tragédia final, que não foi omitida nem por Euclides da Cunha, predominou a morte imposta pela decapitação à faca ou à baioneta com a separação da cabeça do corpo ou a exposição das vísceras do infeliz que eram arrancadas por arma branca.

Nos meios católicos, não se rezaram missa alguma pela alma dos seguidores do Conselheiro ou do próprio Antonio Maciel. Já quanto aos soldados mortos em combate, havia uma preocupação religiosa em lhes garantir a salvação da alma. Às vezes, havia exageros, tal como o ocorrido com a notícia falsa da morte de um tenente por nome Mario Barbosa. Várias missas foram rezadas em intenção de sua alma, até que o seu comandante mandou telegramas informando: “Ele está vivo, parem com isso”.

 

No interior de Minas Gerais, um fazendeiro tentou, sem sucesso, mandar celebrar missa pela alma do Conselheiro. Chegou a montar um simulacro de velório no interior da igreja, mas seu intento foi frustrado pelos moradores da região (O Expositor Cristão, 28/8/1897). Missas também foram rezadas quando da ida de soldados para o front e, depois, em favor da alma dos soldados mortos em ação ou então quando eles voltaram como “vencedores”. Entretanto, os protestantes daquela época, mais que os de hoje, eram extremamente anticatólicos. Por isso, O Estandarte (6/11/1897) censurou o uso de edifício público e a participação do próprio governador de São Paulo, Campos Salles (futuro presidente da República), numa missa campal “em homenagem à memória dos heroicos soldados do batalhão paulista, mortos no sertão baiano, em luta com o fanatismo impenitente”.

Segundo esse jornal, o fato “escandaloso” não estava nas notícias dos milhares de mortos, a maioria do lado dos jagunços, e nem no ritual de degola, mas na quebra da regra constitucional de que num Estado laico se deve esperar a separação entre a Igreja e o Estado. O lamento dos presbiterianos é que a fachada de uma escola pública havia se transformado em “um altar da idolatria romanista”.

Portanto, prevaleceu, no noticiário desses dois jornais, o apego à ordem; a importância de se manter a República e seus ideais conforme o modelo norte-americano; a lamentação pela existência, no país, da ignorância e da prática de um “falso cristianismo”, consequência, segundo eles, da hegemonia católica de vários séculos. Os jornais e publicações protestantes eram, sobretudo, anticatólicos e republicanos.

NOTAS

[*] Uma versão ampliada deste texto foi publicada na revista de pós-graduação da Universidade Metodista de São Paulo, Estudos de Religião, v. 31, n. 1, p. 55-77, jan./abr. 2017 – ISSN Impresso: 0103-801X – Eletrônico: 2176-1078.

PARA SABER MAIS

CUNHA, Euclides da. Os sertões – Campanha de Canudos, 27. ed. Brasília: Editora da UnB, 1963.

GALVÃO, Walnice Nogueira (Org.). No calor da hora: a guerra de Canudos nos jornais, 4a expedição. 3. ed. São Paulo: Ática, 1994.

HARDMAN, Francisco Foot (Org.) Morte e progresso Cultura brasileira como apagamento de rastros. São Paulo: Editora UNESP, 1998.

HERMANN, Jacqueline. Canudos destruído em nome da República – uma reflexão sobre as causas políticas do massacre de 1897, Revista Tempo, Rio de Janeiro, v.2, n.3, 1996, p. 81-105.

NOGUEIRA, Ataliba. Antonio Conselheiro e Canudos. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974.

MONIZ, Edmundo. A guerra social de Canudos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

MONTEIRO, Duglas Teixeira. Um confronto entre Juazeiro, Canudos e Contestado. In: BORIS, Fausto (Ed.). História geral da civilização brasileira, v.3, O Brasil republicano, segunda parte “Sociedade e instituições (1889-1930), São Paulo: Difel, 1977.

MONTEMARCIANO, Frei João Evangelista. Relatório Apresentado pelo Frei… ao Arcebispado da Bahia sobre Antônio Conselheiro e seu séquito no Arraial dos Canudos. Salvador: Ufba, 1987 (reedição facsimilada da edição de 1895).

PROFETA, Oswaldo. Canudos – Libelo de um massacre, uma visão religiosa da Guerra de Canudos. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990.

PEREIRA DE QUEIROZ, Maria Isaura. O messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Dominus-Edusp, 1965.

SILVA, Severino Vicente da (Org.) A Igreja e o controle social nos sertões nordestinos.  São Paulo: Paulinas, 1988.

VASCONCELLOS, Pedro Lima. Do Belo Monte das promessas a Canudos destruída: O drama bíblico na Jerusalém do sertão. Maceió: Editora Catavento, 2010.

VILLA, Marco Antonio. Canudos: O povo da terra. São Paulo: Ática, 1995.


OTTEN, Alexandre. “Só Deus é grande”: A mensagem religiosa de Antonio Conselheiro. São Paulo: Loyola, 1993.

O AUTOR

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Leonildo Silveira Campos é doutor em Ciências da Religião, professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo. É autor de Teatro, templo e mercado: Organização e marketing de um empreendimento neopentecostal (Petrópolis-São Paulo, Vozes-Simpósio-Umesp, 1997) e de capítulos de livros e artigos sobre religião no Brasil, especialmente, pentecostalismo, protestantismo, religião e política, religião e mídia.

COMO CITAR ESSE TEXTO

CAMPOS, Leonildo Silveira. A Guerra de Canudos na visão de metodistas e presbiterianos paulistanos. Revista Coletiva, Recife, n. 21, jan.fev.mar.abr. 2017. Disponível em: <https://www.coletiva.org/dossie-pluralismo-religioso-n21-a-guerra-de-canudos-na-visao-de-metodistas-e-presbiterianos-em>. ISSN 2179-1287.

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