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Entrevista com Lilia Schwarcz

03. 2023 | Entrevista por Cibele Barbosa 

Revista Coletiva -  Em seu livro, escrito juntamente com Heloisa Starling, A bailarina da Morte: a gripe espanhola no Brasil, você apresentou detalhadamente o contexto, os dramas e ações em torno da chegada da pandemia de gripe espanhola, que abateu uma importante parcela da população mundial, em 1918. Pouco mais de um século depois, nos deparamos com uma pandemia tão mortífera quanto. Seria esperado que tivéssemos aprendido, como sociedade, as lições do passado, atuando de forma eficaz no combate e conscientização sobre o vírus. Como explicar, então, os retrocessos vividos em 2020? Ainda é válida a máxima de que aprendemos com os fatos que nos antecederam?De modo geral, a partir dos seus estudos e de uma primeira impressão, como o senhor analisa essa reforma mais recente do ensino médio, formalizada em fevereiro de 2017? 

 

Lilia Schwarcz - Eu penso que as máximas “a história ensina”, e “os fatos que nos antecederam [servem] para que possamos nos corrigir ou dar novo rumo” nunca foi verdade. Se isso fosse verdade, nós não repetiríamos guerras, o Brasil não seria um país tão desigual, o mundo não estaria vivenciando novos surtos de fome. Eu sempre penso que a história, como diz o Peter Burke, ela dá um lembrete. Mas o que é que a gente vai fazer com esse lembrete é uma outra história.

 

Em 1918, o Brasil foi pego de surpresa. As comunicações já eram globalizadas, mas não na nossa velocidade e sabia-se que um surto, com uma gripe muito estranha, havia estourado na Europa, mas as pessoas pensavam que ele era uma decorrência da guerra e que envolvia só as pessoas que nela estavam. Não se sabia, à época, que, ao que tudo indica, o surto teria ido à Europa junto com os soldados norte-americanos que foram ajudar a terminar os combates. Estávamos em 1918, o ano final da guerra, uma guerra devastadora, muita fome, muita doença, muita desorganização social e as consequências da gripe espanhola são tremendas. Naquele contexto, não se sabia como diminuir ou combater a peste, tanto que a própria peste mudou muito de nome, ou seja, o nome gripe espanhola teve a ver com uma circunstância histórica. A Espanha não havia entrado na guerra, portanto, a imprensa estava livre e, naquele país, noticiou-se a evidência de uma epidemia, de uma gripe que estava acometendo, sobretudo, os soldados em guerra. Logo, a Espanha foi alcunhada com esse nome, “a peste de gripe espanhola”. Quando, hoje, nós sabemos que a Espanha não tinha propriamente a ver com a história. E que, na Espanha, a gripe era chamada de gripe francesa e assim por diante.

 

Toda vez que nós não sabemos os nomes, isso indica muita confusão, muita ambivalência, muitos problemas. A gripe só chegou ao Brasil em agosto e, mesmo assim, ela chegou via navio, um navio que atracou em Recife e, a partir de então, a doença fez vários eixos para o Sul do país, para o Centro e para o Norte. Até hoje, nós não temos estatísticas confiáveis sobre os números de pessoas falecidas em decorrência da gripe espanhola. Ontem, isto é, em 1918, como hoje, em 2020 até 2022, a epidemia e, agora, a pandemia, ficaram acobertadas por muito tempo, foram tomadas por políticas negacionistas durante muito tempo. Só que diferentemente de 2020, em 1918, logo que a epidemia se instalou, as autoridades agiram contra ela, ou seja, usaram os recursos que possuíam, o oposto do que aconteceu durante a gestão Jair Bolsonaro, quando, hoje, nó sabemos que esse era um governo anti-vacina, negacionista, e que deixou muitas vacinas vencerem por causa do prazo de validade.

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Então, eu penso que, em comparação entre o passado e o presente, nós saímos perdendo. Nós também saímos perdendo na categoria solidariedade. Em 1918, é possível ver muitos atos de solidariedade por parte da sociedade civil. No começo da pandemia, todos diziam “Ah! Agora que eu vou ficar recluso, vou mudar a minha vida”. Nada disso aconteceu e as pessoas não chamaram a atenção que esse estado de isolamento só era possível para determinadas classes sociais, portanto, outras classes sociais estavam na rua. Uma pandemia, ou uma epidemia, nunca traz nada de bom, mas o que ela faz é escancarar as características de um país. No nosso caso, tanto em 1918 como em 2020, 2021 e 2022, essas doenças coletivas escancararam a profunda desigualdade e o racismo estrutural vigente no país, tanto que os mais afetados em 1918 foram as populações pobres, recém saídas da escravidão, as populações negras e também imigrantes, que viviam nas nossas periferias com condições de vulnerabilidade muito altas. Essa evidência é muito semelhante aos resultados da covid-19.

 

Hoje, nós sabemos que as populações mais afetadas foram igualmente as populações negras que moram nos nossos subúrbios e periferias das grandes cidades. Então, para fazer de uma longa resposta uma conclusão breve, eu diria que nós não aprendemos com o passado. Ou seja, nós não aprendemos a nos precaver, nós não aprendemos com a experiência humana e a construção de redes de solidariedade, e as consequências disso são muito visíveis no verdadeiro silêncio que se coloca em relação à morte. O historiador Philippe Ariès diz que logo depois da Primeira Guerra, e eu diria logo depois da Primeira Guerra junto à gripe espanhola, deu-se um sequestro da morte. Em outras palavras, não se podia mais falar da morte. A morte era, até então, um fenômeno, uma experiência que aglutinava, uma experiência que fazia com que a comunidade sentisse aquela morte. Os mortos desfilavam em procissão, os sinos das igrejas badalavam. Depois de 1918, a morte foi ficando reclusa a um lugar em que não se vê e que se trata dela de forma muito sumária, muito rápida. E, sobretudo, não se reflete.

 

Essa é a nossa experiência diante da covid-19 também. Impressiona-me muito como não se fala, não se comenta, não existem políticas públicas, de fato, endereçadas às vítimas da covid; não apenas as pessoas que pereceram por conta do vírus, mas às pessoas que têm traumas pós-covid. Nós sabemos como a depressão virou uma doença endêmica depois da pandemia, nós sabemos que existem várias pessoas traumatizadas por conta das mortes na família; filhos culpabilizados pelas mortes dos pais, irmãos pelas mortes de outros irmãos. Mais uma vez, nós estamos sequestrando a morte, retirando-a do nosso convívio, da nossa reflexão e do nosso desenvolvimento como pessoas, como humanidade, como agentes que têm capacidade reflexiva. Enfim, infelizmente, a história não tem essa capacidade de, com as experiências do passado, dar conta do presente e prever o futuro.

Revista Coletiva - Na esteira da pandemia da covid-19 e da emergência de governos de direita e de extrema direita, ladeada pelo incremento de fake news, uma onda de ataques à ciência e uma série de negacionismos ganharam as redes sociais, gerando consequências nefandas à população. Em uma entrevista, você chamou atenção para a diferença entre negação e negacionismo. Afinal, qual a diferença entre ambos? E por que os negacionismos ganharam terreno tão fértil no Brasil?

Lilia Schwarcz - Na verdade, uma série de governos de extrema direita foram eleitos até antes do fenômeno da covid-19. Esses governos de líderes brancos, homens, de classe média, classe média alta, tomam forma a partir de 2016, internacionalmente, por conta de um processo recessivo mundial, entre outras coisas, e uma espécie de descrença na democracia. Eu chamo de cultura da nostalgia, ou seja, uma série de líderes e seus fiéis seguidores que acreditam em um passado que nunca existiu; em um passado nostálgico de supremacia branca, heteronormativa, de imposição de determinadas formas capitalistas de ser, cujo objetivo é a transformação de todos os demais, todos os outros corpos, em corpos subjugados.

 

Então, esse foi um fenômeno que, na minha opinião, tomou forma em 2016, tendo a eleição de Donald Trump como um momento sintagmático, um momento icônico, paradigmático. Vários outros governos, a exemplo do governo que se instalou no Brasil a partir de finais de 2018, procuraram imitar esse modelo, essa fórmula criada nos Estados Unidos, na base do copia e cola. O que aconteceu, portanto, foi uma coincidência, uma colisão, eu diria, entre esses governos populistas que ganharam a eleição de forma digital. Foi a primeira vez que presidente, governadores e deputados, foram eleitos e eleitas exclusivamente por plataformas digitais e plataformas digitais que se concentraram em divulgar fake news e que têm um total descompromisso com a ciência, com o bom jornalismo, com a boa informação.

 

Isso explica o ataque muito claro à academia, à produção de informação balizada, aos jornalistas, aos professores, à comunidade científica de uma forma geral. Ora, a colisão desses dois fatores num contexto pandêmico é desastrosa mesmo; é nefasta, porque ao invés de termos no poder líderes que vão trabalhar de mãos dadas com a ciência, nós tivemos, de novo, a exemplo do Brasil, líderes que procuraram negar a evidência da covid-19, sobretudo, negar a importância da vacina. Isso, no caso brasileiro, retardou demais o processo de, se não de cura, porque sabemos que a covid está por aí, mas um processo de desacelerar as mortes, um processo de cuidado. Cuidado no sentido de amparo, de política de Estado, de cuidado com a população.

Eu costumo opor conceitos como negação e negacionismo. Em uma democracia, você negar alguns argumentos com base em outros argumentos verídicos, pode ser considerado um ato de escuta, de debate fundamental para a democracia. Eu sempre digo que a democracia funciona muito bem na base do debate. Então, a primeira acepção da palavra seria uma acepção até positiva, ou seja, eu me nego a simplesmente comprar um argumento sem que eu me sinta convencida, sem que eu perceba que existem dados para esse argumento. Deste modo, a negação pode ser um ato de resistência. Resistência contra governos autoritários, porque pode significar uma negação da ordem, uma negação da estrutura, uma estrutura, muitas vezes, falível. Vamos pensar na escravidão, que se enraizou de tal maneira no Brasil. Os grupos de quilombolas, daqueles que fizeram insurreições negras, [que] se opuseram ao sistema escravista. Isso é uma forma de negação, é uma forma de resistência.

 

Existe na psicologia o estado de negação, esse estado de negação já é uma outra derivação e já é mais próximo de negacionismo, porém, a nível individual. O que é o estado de negação? É quando uma pessoa escolhe não ver a realidade, negar a realidade, como uma forma de escape. Escape de uma situação desconfortável, escape de uma situação traumática. Esse é um estado de negação. Isso é totalmente diferente da ideia do verbo negar, de se opor. Esse já é um estado que fala de pessoas que, de alguma maneira, desconectam, não aceitam, recusam a realidade, uma realidade, muitas vezes, empiricamente verificada. Agora, o que é o negacionismo? É a passagem desse estado de negação, que é um um conceito mais da ordem do indivíduo, da pessoa, para uma política de Estado.

 

Como diz Durkheim, a lógica da sociedade não é igual à soma dos indivíduos. A sociedade produz uma outra realidade, para além da realidade empírica do indivíduo, digamos assim. Então, o que é o negacionismo? O negacionismo é uma política de Estado pautada em fake news e que, da mesma maneira que o estado de negação, é uma política de Estado que nega a realidade, que apresenta uma outra realidade paralela e muito distante dos dados demonstrados pela ciência. Este é um caso muito grave, porque um líder republicano precisa poder enxergar a realidade ou se cercar de assessores, ministros, políticos, o que for, que o ajudem a observar o seu entorno, observar o que está, de fato, acontecendo.

No Brasil, o nosso então presidente se utilizou demais do negacionismo como política de Estado. Por que essa prática social ganhou terreno fértil no Brasil? Porque Jair Bolsonaro é um político populista e o que fazem os populistas? (Não me refiro ao populismo tradicional, entre muitas aspas, dos anos 60, em toda a América Latina, mas me refiro ao populismo digital. A matriz é semelhante). Esses são políticos que, com o intuito de ampliar, manterem ampliado o seu poder, fazem frases, elaboram políticas que tratam de aspectos mais agradáveis à população, ou pelo menos aos seus seguidores, e deixam de falar, deixam de lidar com circunstâncias, digamos assim, entre muitas aspas, mais desagradáveis, ou seja, trata-se de um estado coletivo de recusa, um estado coletivo de amnésia.

 

Só dessa maneira podemos entender que Jair Bolsonaro e os seus ministros da saúde tenham adotado um remédio de comprovada não eficácia, um remédio para a malária, mas que não era eficaz para a covid, que era internacionalmente comprovada a sua pouca eficácia. Só assim se pode explicar porque o governo Jair Bolsonaro demorou tanto para trazer a vacina contra a covid e só o fez por uma questão política, para competir com o então governador de São Paulo, o João Dória, que tinha também projetos de ser um presidente, mas não importa o motivo.

 

Jair Bolsonaro só reagiu na base da conveniência política e, mesmo assim, fez esse corpo mole, isto é, fez toda essa confusão acerca do corpo do presidente. O corpo do presidente, assim como o corpo do rei, o corpo do governante, tem um papel simbólico fundamental. Então, o fato de o presidente manter essa penumbra sobre se foi vacinado ou não foi vacinado, estabelecer uma política de sigilo que nas leis brasileiras têm um outro fim, um outro objetivo, que não a individualidade do presidente, isso teve um efeito muito ruim na população, porque se há algo que o presidente deve fazer é ser exemplar, no sentido de dar bons exemplos. E o que fez Jair Bolsonaro foi o contrário, e nós sabemos que nas mais de 600 mil mortes, talvez um terço e meio poderiam ser evitadas, caso o Brasil tivesse adotado uma política mais eficiente de combate à pandemia. Não fizemos isso, e as consequências, nós sentimos e vamos sentir durante as próximas décadas. 

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Revista Coletiva - Em seu livro, em coautoria com Carlos Lima Jr. e Lúcia Stumpf, O Sequestro da Independência, você chama atenção, ao fim da obra, para o modo como foi organizado o Bicentenário da Independência pelo governo Bolsonaro. Sob um viés ufanista e patriótico, o governo reabilitou a figura do impopular D. Pedro I buscando tecer elos de semelhança entre o monarca e o então presidente. Na mesma linha, as comemorações do Bicentenário visaram difundir a ideia de um “passado imaginado – o mito da harmonia do brasileiro”, obliterando, assim, as violências da e na formação do Brasil. Este último “sequestro” da Independência pode ser pensado em meio a uma lógica de “negacionismo histórico”?

 

Lilia Schwarcz - Jair Bolsonaro governou na base das guerras culturais. Não à toa, ele tinha sempre tão perto o seu secretário da cultura. Ele diminuiu o raio de ação do antigo Ministério da Cultura, transformou numa Secretaria da Cultura e fez, com esses secretários, uma verdadeira guerra cultural. Nessa guerra cultural, havia pautas muito importantes: combate às populações trans; combate ao que eles chamavam de ideologia de gênero (não existe esse conceito); o combate à uma agenda a favor do meio ambiente; animou que a população civil se armasse e usou a história como uma espécie de cabide, de bengala, para o que ele quisesse difundir. Então, os vídeos produzidos pelo governo ou então por grupos, como esse Brasil Paralelo, são terríveis nesse sentido de voltar ao passado para imaginá-lo, para reescrevê-lo, sem nenhum dado, sem nenhum fato, sem nenhum documento, sem nenhuma fonte.

 

Então, essa volta a um passado harmonioso é uma volta absolutamente ideológica. Nós sabemos como o Brasil não foi descoberto; que a população do litoral brasileiro tinha a mesma densidade populacional do que a Península Ibérica, na época; sabemos que a mortandade foi muito alta - os números mais conservadores falam da ordem de 75% de indígenas do litoral que pereceram, os números mais realistas, na minha opinião, falam da ordem de 90%. O fato é que não foi um descobrimento, tampouco um achamento, foi, de fato, uma invasão que provocou um grande genocídio dessas populações, que morriam, é claro, de uma batalha biológica, morriam de gripe, mas morriam de guerra também e das consequências da escravização. Então, esse é um exemplo de como esse governo pretendia “educorar” o passado. 

 

Nesse livro, que a Lúcia Stump e o Carlos Lima, grandes pesquisadores, escreveram junto comigo, chamado O Sequestro da Independência, nós falamos de vários sequestros no tempo: do sequestro da monarquia, monarquia que construiu o sete de setembro para rever a figura impopular, como você chama atenção, de Dom Pedro I; o sequestro do centenário de 1822, quando São Paulo tentou trazer para si a ideia da independência, enfatizando o local das margens do Rio Ipiranga; falamos também das celebrações dos 150 anos, em plena ditadura militar, quando os militares sequestraram a festa cívica e transformaram a data em uma festa militar. Foi possível ver o mesmo ocorrer com as celebrações que o governo Jair Bolsonaro realizou. Tanto que, um ano antes, Bolsonaro anunciou um golpe, anunciou que se não fosse reeleito ele daria um golpe.

 

Essa é a famosa ideia de golpe democrático, ou seja, uma contradição dos seus termos, porque um golpe é a retirada do governo legítimo do poder, portanto, não pode ser democrático; ou também pensar nas parcas celebrações que o governo Jair Bolsonaro fez do centenário, que tem que ser uma celebração crítica. A pergunta é: independência para quem? Mais ainda, por que falar apenas de uma independência tão palaciana, tão europeia, tão elitista, tão masculina, quando, hoje, nós sabemos que foram muitas as independências? Se nós pensarmos que até hoje, na Bahia, a data do bicentenário será celebrada, esse ano de 2023, em julho, ou se nós pensarmos na batalha que aconteceu no Piauí, que levou a mais de duzentas mortes. Então, isso põe por terra não só a ideia de uma independência elitista, dos grandes proprietários, mas a ideia de uma independência pacífica, que é um outro mito muito forte, o mito da nacionalidade brasileira, que é supor que o Brasil e os brasileiros têm uma índole pacífica. Como é que podemos dizer isso se nós sustentamos um regime que supõe a propriedade de uma pessoa por outra durante quase quatro séculos?

Então, o que eu acredito é que sim, esse foi o último sequestro que pode ser entendido como uma forma de revisionismo histórico. Não sei se exatamente um negacionismo histórico, mas um grande revisionismo histórico, que é uma forma de negação. Eu lembro de um vídeo que foi divulgado pelo governo anterior em que aparecia Dom Pedro em um cavalo, valente, empinando, Leopoldina no seu colo, ela de princesa, de rosa, com borboletas, ou seja, numa representação de uma imagem absolutamente romantizada e absolutamente heteronormativa e misógina. O que é que significa o cavalo se não a virtualidade do príncipe, homem branco? E a mulher na garupa significa o que também? Uma forma de subordinação. Quer dizer, ela está na carona, ela está a reboque de seu príncipe. A gente tem que parar com essa história de príncipes e princesas. 

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currículo/itnerário

Há também, na história brasileira, um claro imperialismo interno, que é o imperialismo de uma história sudestina, como se a história de São Paulo e do Rio de Janeiro valesse para o Brasil inteiro. Acho que nós perdemos uma oportunidade em 2022, mas nós vamos ter uma nova oportunidade em 2023. Qual é a outra oportunidade? De, de fato, celebrarmos criticamente, uma emancipação que seja mais popular, dando atenção a outros setores que participaram desse processo de emancipação política; que seja mais plural, percebendo diferentes movimentos que ocorreram em todo o território, porque com certeza as pessoas não se sentiam, naquele momento, como brasileiros e brasileiras. Com isso, [celebrarmos uma independência] mais democrática, pensando no que falta, no que essa emancipação não trouxe. Uma forma republicana e democrática de pensar na emancipação política e na independência é tomá-la como um processo, um processo aberto, no sentido de que a efeméride pode nos permitir refletir mais criticamente não só sobre o que conquistamos (e o caminho já é longo), mas o que podemos ainda conquistar e precisamos conquistar. 

 

Revista Coletiva -  Professores da educação básica, em especial os da área de Humanidades, foram um dos alvos mais importantes dos ataques de grupos negacionistas e ultradireitistas. Esses docentes também tiveram que lidar com a enxurrada de fake news recebida pelos alunes, o que provocou constantes questionamentos em sala de aula sobre o fazer científico. Na sua opinião, quais são os maiores desafios a serem enfrentados por esses profissionais diante deste cenário? Quais seriam os caminhos possíveis para o enfrentamento da propagação dos negacionismos em sala de aula? 

 

Lilia Schwarcz - Os professores e as professoras em sala de aula foram muito perseguidos, censurados, por conta dessa verdadeira avalanche de grupos retrógrados. Eu sempre chamo a atenção na diferença entre grupos conservadores e grupos retrógrados, porque o pensamento conservador, se for um pensamento que não se opõe à lei e à constituição, mais uma vez, ele pode ser muito bom para a democracia. Agora, o que eu penso que é ruim para uma república, uma democracia, é um pensamento retrógrado, de direita radical, porque essas são pessoas que justamente pretendem não respeitar a constituição, não respeitar a lei e fazer a sua própria lei, fazer a sua própria história.  

 

Os professores passaram por um processo muito coercitivo na sua atuação, e acho que nós vivemos um momento, agora que nós conversamos, no início de 2023, em que é possível reverter esses processos. Eu acho que direitos sempre precisam ser conquistados mais uma vez. A história é uma história de luta por direitos e é hora de nós lutarmos por uma educação pública mais inclusiva, mais plural, mais democrática. Eu penso que essa escola que nós todos visionamos é uma escola que vai ter que alterar radicalmente o seu currículo, e eu me refiro às várias interseccionalidades. 

 

Vai ter que evitar uma pauta tão misógina, tão marcada por líderes só masculinos, uma pauta tão sexista, mas também uma pauta tão racista. Nos nossos livros, ainda, o papel das pessoas negras é como escravizados vitimizados, quando, hoje, falamos muito do que foi uma agência escrava, no sentido de que os escravizados e escravizadas lutaram pela sua emancipação, lutaram pelo seu direito à liberdade, para fazer valer a sua liberdade. [Também nos dias de hoje] as mulheres negras sempre são apresentadas ligadas ao fogão ou à ideia do cuidado, como se a questão do cuidado fosse uma questão individual e não uma questão do Estado. O Estado tem que cuidar da população. 

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Então, como é que nós podemos enfrentar essas questões do negacionismo? O negacionismo reina na base do silêncio, na base da invisibilidade, na base do apagamento da própria realidade. O contrário do projeto do negacionismo é o projeto iluminista. Eu não me refiro àquela filosofia ou outra, mas eu penso como uma vocação. É um projeto republicano, é um projeto democrático, que ao invés de manter as áreas de contradição, os nossos traumas coletivos na penumbra, ele traz à superfície essas questões com um sentido curativo, no sentido de curar, de cuidar das feridas. O espaço da sala de aula é um espaço fundamental para a escuta, é um espaço fundamental para o diálogo e é um espaço fundamental para que a gente combata o negacionismo como um estado pessoal, mas o negacionismo também como uma política de Estado.

Nós vivemos quatro anos de negacionismo e eu espero, historiadora que eu sou, que esse tenha sido apenas um parênteses desagradável, como diria Euclides da Cunha, em relação à Canudos e ao massacre em Canudos. Que esse tenha sido apenas um parênteses na nossa história e que nós possamos retomar esse caminho difícil, por uma democracia tão falha como a nossa, uma vez que o Brasil é um país que combina um projeto democrático de Estado com uma realidade muito racista e de exclusivismos para a sua população. No fundo, esse é um projeto negacionista de longo curso.

Como ter uma democracia em um país tão desigual, num país que pratica esse racismo tão enraizado nas nossas estruturas, na nossa experiência e na nossa linguagem propriamente dita? Tão enraizado que, muitas vezes, as pessoas não veem, não conseguem enxergar o que está bem a sua frente. Essa é uma forma de negacionismo. Como disse a coalizão negra por direitos, “a prática é o critério da verdade”. Então, cabe a cada um de nós mostrar como é possível a tática da cidadania, que tem que ser uma prática antirracista, antimisógina, antissexista e a favor também. A favor da pluralidade, da inclusão social e do combate à desigualdade. É isso. Muito obrigada.

A ENTREVISTADA

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Lilia Moritz Schwarcz é professora titular no Departamento de Antropologia da  USP. Foi Visiting Professor em Oxford, Leiden, Brown, Columbia e Princeton, onde foi Global e Professora Visitante desde 2010. Em 2007 obteve a John Simon Guggenheim Foundation Fellow. Em 2010 recebeu a Comenda da Ordem do Mérito Científico Nacional. Desde  2015 atua como curadora adjunta para histórias e narrativas no Masp e é  colunista do jornal Nexo. É autora, entre outros, de O espetáculo das raças (Companhia das Letras, 1993 e  Farrar Strauss & Giroux, 1999), Racismo no Brasil (Publifolha 2001), As barbas do Imperador (1998, Prêmio Jabuti/ Livro do Ano e New York, Farrar Strauss & Giroux, 2004), Brasil: uma biografia (com Heloisa Murgel Starling; Companhia das Letras, 2015, indicado dentre os dez melhores livros prêmio Jabuti Ciências Sociais) e Lima Barreto triste visionário (São Paulo, Companhia das Letras, 2017).

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COMO CITAR A ENTREVISTA

SCHWARCZ, Lilia. Entrevista com Lilia Schwarcz. [23. mar. 2023] Recife: Revista Coletiva. Entrevista concedida à Cibele Barbosa. Disponível em: <> ISSN 2179-1287.

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