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11 de maio de 2023

Negacionistas: uma definição em camadas

José Szwako Prociencia; JCNE[1]

DAS ACUSAÇÕES AO PROBLEMA TEÓRICO

Chamar algo ou alguém de negacionista se tornou, desde a pandemia da covid-19, uma verdadeira febre na vida pública brasileira. Os alvos variam, mas o primeiro deles não poderia ser outro: “Bolsonaro negacionista”; “governo negacionista”; “política negacionista”; “ministro negacionista” – a lista é longa. As acusações de negacionismo invadem as mídias convencionais, as plataformas e redes digitais, e também os aplicativos, se alastrando pelo senso comum. Paradoxalmente, no entanto, ninguém se diz “negacionista”. Não se trata, portanto, de uma identidade autoatribuída. É sempre o outro que é alvo de uma acusação, por definição, controversa.

Gostaria, aqui, de deslocar o foco de tais acusações para se valer dos estudos sociais das ciências, bem como das análises dos movimentos e conflitos políticos. Longe de afirmar que os negacionismos – sempre no plural – são movimentos sociais, sugiro que é mais frutífero apreender o fenômeno pelas dinâmicas, expressões e camadas da realidade, das quais os chamados negacionismos e negacionistas são indissociáveis. Em determinado momento, notei que eles formam par forte com o anti-intelectualismo, entendido como forças contra universidades e meios de formação cultural e artística [2] . Neste ponto, quero suspender o anti-intelectualismo para focar em uma conceituação provisória, porém, heurísticamente fértil – espero –, daquilo que pode ser os traços analíticos mínimos de uma definição de negacionismo. Tal definição, suas camadas internas e as revisões a ela impostas podem ser, adiante, úteis a um arco mais amplo de pesquisas.

Tomar o negacionismo – o substantivo – como objeto de reflexão poderia nos levar, porém, a algum tipo de reificação ou essencialismo, como quem diz: “negacionismo é” necessariamente isto ou aquilo. Para evitar esse risco, sugiro tomar a qualificação “negacionista” como nosso objeto, ou seja, proponho olhar para aquilo que pode ser adequadamente qualificado como negacionista. Em nossa definição,

negacionista é qualquer ação ativamente orientada em oposição a consensos científicos, bem como a autoridades e instituições de produção de conhecimento que, se valendo de retóricas e performances científicas, visa fins extracientíficos, isto é, visa interesses e valores políticos, econômicos e ideológicos-morais.

Cada uma das partes dessa proposição importa. Para entender o que está por detrás delas, vamos seguir com o texto em camadas, como que desmontando essa definição por etapas, para que sejam visíveis os seus alcances e pressupostos, mas também os seus limites.

Camadas 1 e 2: “qualquer ação ativamente orientada em oposição a consensos científicos, bem como a autoridades e instituições de produção de conhecimento”

Falsamente simples, a proposição acima veicula duas ideias que, apesar de relacionadas, podem ser teoricamente separadas. A primeira delas é a ênfase na sua natureza acionalista. Os fenômenos envolvendo a negação das ciências - aí incluídas as entidades, autoridades, práticas institucionalizadas e os resultados por elas alcançados - são melhor compreendidos se tomados enquanto séries de estratégias e ações elaboradas e levadas adiante por grupos dentro do processo político mais amplo, ou seja, em relação de conflito e cooperação com outros grupos sociais, bem como autoridades políticas e instituições públicas. 

Dizer que se trata de uma “ação ativamente orientada” significa que maneiras ou expressões de oposição pontual às ciências não precisam ser rotuladas de “negacionistas”. Isso porque existe um amplo rol de formas para lidar e negociar com as ciências, seus saberes e suas autoridades, sendo que é muito provável que a maior parte delas pode ser uma forma de resistência, dúvida ou contestação. No entanto, opor-se a um ou outro consenso científico não carrega aquilo de distintivo da ação negacionista: o seu caráter ativo, não-espontâneo.

Pelo contrário, a ação de grupos e discursos negacionistas é altamente deliberada. Quando a indústria do tabaco eufemiza o potencial fatal do fumo de cigarro, ela o faz de maneira orquestrada. Ela produz pseudoconhecimento, travestido de teorias e de ciência para instaurar e manter certo grau de ignorância sobre a agenda do câncer decorrente do fumo [3]. 

Trata-se, então, de algo fabricado, forjado: uma ação orientada para alcançar fins bastante específicos. Neste mesmo sentido, empresas de combustíveis fósseis têm investido fortemente, pelo menos desde os anos 1980, no negacionismo climático. Conforme salientam Naomi Oreskes e Andrew Conway [4], por meio de campanhas e pagando supostos especialistas, essas empresas fomentam falsas dúvidas a respeito do aquecimento global, de seus responsáveis e dos meios para sua superação. Ora, nada disso é espontâneo, quer dizer, não ocorre sem o investimento sistemático de grupos de atores e seus recursos para chegar a determinados fins, lançando dúvidas onde existem consensos científicos [5]. 

A partir daqui, vamos à segunda camada de nossa definição: além de ter uma natureza ativa (isto é, ser sistemática, deliberada, fabricada, concatenada, etc.), a ação negacionista coloca em sua mira os consensos científicos e as autoridades e instituições que produzem tais consensos.

O que está por trás dessa noção de consenso científico é a ênfase em uma concepção de que as ciências não produzem verdades absolutas sobre o mundo. Tendo sua prática institucionalizada em entidades (a exemplo das universidades ou dos centros de pesquisa) e especialmente em procedimentos especializados (métodos, avaliação por pares e reflexividade, por exemplo), as e os cientistas constroem, crítica e reflexivamente, consensos a respeito de seus objetos e problemas de pesquisa. Esses consensos, por sua vez, não traduzem “a verdade”, nem a única verdade possível sobre tais objetos, mas são, em geral, o melhor resultado de disputas, avanços e acordos no conhecimento conquistado em condições institucionais dadas e institucionalmente vigiadas e autovigiadas. Deste modo, os consensos não são as últimas palavras sobre uma realidade, mas uma proposição limitada – sempre provisória, porque é aberta à revisão – sobre o que é possível de ser dito ao redor de um problema.

Com isso, boa parte dos discursos negacionistas se dirige a colocar esses consensos em xeque. A despeito de ter seguido um padrão relativamente normal, como controvérsia que não tardou muito a se estabilizar [6], no contexto brasileiro; a defesa da hidroxicloroquina (HCQ) pode ilustrar adequadamente as camadas de análise acima propostas. Tratou-se, grosso modo, da ação concatenada de grupos sociais e políticos em aliança dentro do processo político: o governo Bolsonaro em alianças com suas bases tanto na sociedade civil, a exemplo de médicos negacionistas, como nas plataformas digitais. Na mira deles, é claro, estava o consenso internacionalmente alcançado de que o uso da HCQ não passava de um “mito” [7] não só ineficaz para o tratamento da covid-19, mas potencialmente prejudicial para pacientes.

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Imagem criada a partir da inteligência artificial photoroom, usando como base a foto de Adriano Machado, em que o ex-presidente mostra uma caixa de Hidroxicloroquina para emas.

Camadas 3 e 4: uma ação que se vale de técnicas e performances científicas para atingir fins extracientíficos

Se ser negacionista é uma ação sempre ativa e que mira nos consensos científicos, isso ainda não é tudo. Ela se faz parecer “científica”, mobilizando artefatos, argumentos e performances que emulam as práticas científicas institucionalizadas. Em poucas palavras, a ação negacionista se traveste de ciência. Isso pode se dar de inúmeras maneiras, mas não é raro que ela envolva a cooptação de recursos humanos que se alegam especialistas, mas com pouca ou sem qualquer expertise em temas nos quais pretendem colocar em dúvida consensos conquistados.

No caso brasileiro, a análise dos embates e debates ao redor das estratégias de combate à covid-19 mostra como a defesa de HCQ passou, na maioria das vezes, pela pretensão de revesti-la com um verniz científico. Exemplo notório disso está na “Carta Aberta ao Brasil sobre a pseudo-ciência [sic] da pandemia de coronavírus que quer proibir o uso de hidroxicloroquina”, assinada por mais de 50 profissionais, parte deles médicos e maior parte absoluta não expert em epidemiologia [8]. Além de mobilizar recursos humanos, estratégia pela qual se pretende alguma autoridade científica, essa carta também traz figuras do que seria, no imaginário de seus postulantes, um atestado de cientificidade, como o número de citações de cada signatário logo após a sua filiação institucional e link para o google scholar [9]. “Os pesquisadores que assinam a carta”, é possível ler ao final, “somam mais de 69 mil citações”.

Assim, ao contrário do que geralmente se imagina, os grupos e discursos negacionistas não são estritamente anticiência. Eles se valem das ciências, de suas lógicas e argumentos e de parte de seus cientistas – tudo para parecer “científico”. Mais que isso: a versão de ciência defendida e propalada por negacionistas é (ultra)cientificista. Ela impõe demandas de objetividade e de neutralidade jamais sonhadas pelo mais tacanho dos positivistas clássicos. Como dizem acuradamente Diethelm & McKee [10], o negacionismo forja expectativas irrealizáveis pelos métodos e meios disponíveis para a pesquisa.

Mas, a pergunta que resta é também a nossa última camada: tudo isso para quê? Toda essa ação concatenada, que mira nos consensos e finge ser científica, visa o quê? 

Em resumo, visa muitas coisas: visa produzir mais lucro de forma opaca para empresas; visa atrair e ampliar votos; visa direcionar recursos e fundos públicos; visa estruturar políticas públicas conforme padrões morais excludentes ou pouco inclusivos; visa, enfim, normalizar formas de ódio e violência contra grupos desiguais relativos à clivagens de gênero, sexualidade, raça ou outras. 

Embora tudo isso seja importante para entender o que move grupos políticos e sociais em suas alianças, performances e estratégias negacionistas, também é importante entender o que eles não visam. Diferentemente de outras formas de interação com as ciências, a ação negacionista não parece ter a transformação e ampliação de consensos científicos em seu horizonte – e isso é fundamental em nossa definição: essa ação é extracientífica. Ou seja, à diferença de saberes e conhecimentos que são forjados nas franjas das universidades, por exemplo, em agências de Estado e em movimentos sociais, que não raro levantam críticas e desafios a consensos estabelecidos, as pautas negacionistas se movem por interesses outros, cuja origem não está nos domínios institucionais das ciências.

Nesse ponto, poderia-se contra-argumentar que as ciências não estão desligadas de outros domínios e, mesmo Robert Merton poderia concordar com uma versão magra desse argumento. Estou apenas lançando luz sobre o reverso interno à própria atividade científica: se poder, sociedade, economia política e cultura atravessam irremediavelmente instituições e práticas científicas, isso não resume tudo o que há nelas e por elas é produzido. É aí que a ação negacionista não parece chegar. Ela não quer disputar consensos por meio de rotinas e retóricas institucionalizadas, pois está mais ocupada em transformar o mundo conforme seus próprios fins, interesses e valores.

O QUE FICA DE FORA?

A definição acionalista daquilo que vale a pena ser entendido como negacionista se enraíza em uma compreensão de que atores mobilizados disputam o mundo, e de que as ciências não estão fora dessas configurações e tensões sociopolíticas. No entanto, o contexto direto do qual foram extraídos os exemplos – a saber, o governo Bolsonaro e a pandemia da covid-19 – pesou na escolha dos casos ilustrativos. Em outra reflexão [11], observei como a ideologia é dimensão fundamental na compreensão desses atores, de maneira a destacar a nuance que afasta meros “conservadores” ideológicos dos grupos mais propriamente “reacionários”. Cabe clarificar, contudo, que isso não significa que não existam pontes entre negacionismos e progressismo; significa, apenas, que escolhi aquilo que politicamente me tocava mais – sem ignorar as lacunas vindas dessa escolha.

 

Por fim, ao sublinhar a dimensão coletiva da ação negacionista, outro limite se apresenta, sendo indispensável se debruçar nas relações entre psicologia e sociologia. Apesar de não desconhecer, por exemplo, o peso do raciocínio motivado nos conspiracionismos [12], é imprescindível um investimento mais amplo na interlocução com os saberes psi, como psicologia cognitiva e psicanálise, para, dentre outras coisas, se perguntar sobre o status patológico ou não dos negacionistas. São desdobramentos que só a investigação empírica e teórica poderá responder.

NOTAS

[1] Agradeço a Luiz Campos e Marcia Rangel, pelos comentários generosos.

[2] (SZWAKO; SILVA., 2022).

[3] (PROCTOR, 2008).

[4] (2010).

[5] (DIETHELM; MCKEE, 2009).

[6] Já em junho de 2020, pesquisadores ingleses não encontravam “nenhum benefício clínico do uso de hidroxicloroquina em pacientes hospitalizados com COVID-19”; ver: https://www.recoverytrial.net/news/statement-from-the-chief-investigators-of-the-randomised-evaluation-of-covid-19-therapy-recovery-trial-on-hydroxychloroquine-5-june-2020-no-clinical-benefit-from-use-of-hydroxychloroquine-in-hospitalised-patients-with-covid-19

[7] Para o “mito da hidroxocloroquina”, ver Dhibar, D.P., Arora, N., Chaudhary, D. et al (2023). “The ‘myth of Hydroxychloroquine (HCQ) as post-exposure prophylaxis (PEP) for the prevention of COVID-19’ is far from reality”. Scientific Reports 13, 378.

[8] A implicação disto é que a figura de “cientista negacionista” com apelos a um suposto status científico, longe de ser contraditória, é parte constitutiva dos discursos negacionistas.

[9] (SZWAKO, 2023).

[10] Diethelm & McKee (2009).

[11] (SZWAKO, 2023).

[12] Ver, dentre muitos outros, Lewandowsky, S. et al (2013) “Rejection of Science NASA Faked the Moon Landing – Therefore, (Climate) Science Is a Hoax: An Anatomy of the Motivated Rejection of Science” Psychological Science 24, p. 622-633.

PARA SABER MAIS

Diethelm, P. & McKee, M. (2009) “Denialism: what is it and how should scientists respond? European Journal of Public Health 19, 2–4.

 

Oreskes, N. & Conway, A. (2011) Merchants of Doubt: How a Handful of Scientists Obscured the Truth on Issues from Tobacco Smoke to Global. Bloomsbury.

 

Proctor, R. (2008) “Agnotology”. In: Agnotology. The Making and Unmaking of Ignorance. Stanford: Stanford University Press.

Szwako, J.  & Souza, R. (2022) “Balbúrdia? Sobre anti-intelectualismo e ativismo científico”. Tatagiba, L. et al (Orgs.) Participação e ativismos. Zouk: Porto Alegre, p.183-206. 

 

Szwako, J. (2023) “Le genre de la liberté. Negacionisme et anti-globalisme chez le reactionarisme bresilien”. Revista Bresils. no prelo

O AUTOR

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José Szwako é professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), com doutorado em Ciências Sociais pela Unicamp. Publicou o "Dicionário dos Negacionismos no Brasil" (Editora CEPE) e investiga formas de mobilização e oposição às ciências (contramovimentos científicos, negacionismos, ceticismos, anti-intelectualismo), bem como formas acadêmicas de organização em defesa das ciências.

COMO CITAR ESSE TEXTO

SZWAKO, José. Negacionistas: uma definição em camadas. Revista Coletiva, Recife, n. 32, jan.fev.mar.abr.maio. 2023. Disponível em: <https://www.coletiva.org/dossie-negacionismos-e-autoritarismos-n32-artigo-negacionistas-uma-definicao-em-camadas-por-szw>. ISSN 2179-1287.

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