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O processo formativo de uma transexual e o enfrentamento da transfobia

Alfrancio Ferreira Dias

“Eu apanhava dos colegas, ficavam dizendo que eu era ‘bichinha’, que eu era menininha, chegaram a colocar minha cabeça no vaso sanitário. Eu lembro como hoje, que sempre um rapaz baixava as calças para mostrar os órgãos sexuais”, relata Adriana Lohanna, 29, professora da rede municipal de Lagarto (SE) e mulher transexual[1]. Com essa passagem da narrativa de Lohanna, iniciamos nosso trânsito nas questões acerca do processo formativo de pessoas transexuais, já deixando claro que nossa intenção não é usar suas experiências, seus sentidos e suas significações para afirmar que todas as instituições de ensino realizam ou desenvolvem condutas reguladoras ou preconceituosas. Mas sim, pretendemos contribuir para o início e/ou desenvolvimento da desconstrução de práticas educativas marcadas pelo princípio da regulação normativa de gênero, entendendo que o campo da educação também pode ser um campo de (des)aprendizagens dessas regulações, a partir de inserção, permanência e fricções que pessoas transexuais realizam.

 

Nesse sentido, sofrer violências simbólicas e físicas, como apanhar dos colegas e servir de chacotas, parecia ser o destino de Lohanna e de muit@s[2] alun@s que se desafiam a viver suas identificações de gênero e sexual que subvertem as normas de gênero pautadas na heteronormatividade, isto é, na naturalização da heterossexualidade. Tais normas tendem a construir imagens corporais generificadas, que são desestabilizadas por corpos em performances, em fronteiras ou entre os lugares.

Refletir sobre como @ transexual é vist@, encarad@ e vivid@ no espaço escolar e quais imagens são construídas sobre el@s é um desafio, pois, para Lohanna, o ensino médio é excludente para as pessoas transexuais. Assim como Lohanna, outra colega travesti, também passou por um processo de exclusão e não voltou mais para a escola. Segundo ela, era comum ambas se perguntarem: “Mas mulher, a gente vai ter que ir para aquele inferno de novo?!”. Era assim que Lohanna e sua amiga travesti percebiam a escola, como um “inferno” em suas vidas, pois sabiam que lá teriam sempre um colega que lhes iria incomodar, mexer e questionar seus corpos desviantes naquele espaço.

 

O ensino médio era excludente para Lohanna, porque todas as vezes que era agredida, ela sempre denunciava, procurando a coordenação. E o que recebia de retorno era uma “passada” de mão na sua cabeça, dizendo-lhe que isso era normal: “Mas meu filho, tenha calma, isso acontece”. Com o passar do tempo, a partir dessas falas de “normalidade”, de que essas coisas acontecem, Lohanna foi percebendo que os agressores não sofriam nenhuma punição, enquanto ela continuava sendo agredida, tendo seus direitos ceifados e vitimada pela homofobia na escola.

Percebe-se que, ao desenvolver uma naturalização das violências ou ao torná-las normais na escola, a gestora da escola de Lohanna também desenvolveu a dicotomia entre normalidade e anormalidade, comprovando as reflexões de outros estudos que mostram que algumas escolas ratificam um padrão de “normalidade”, em que @s transexuais e travestis acabam sendo classificadas como “anormais” e, com isso, acabam sofrendo diversos tipos de violências, chegando até à exclusão do ambiente escolar. Além disso, Lohanna passa por um processo de governo do seu corpo desenvolvido pela escola, visto que a criação da “normalidade” é o desenvolvimento de normas impostas aos corpos. Entretanto, sua presença propunha-se a um alongamento ou a um “desfazer” do gênero, a partir da subversão às normas regulatórias.

 

Esse processo constrangia Lohanna, pois sempre que buscava uma resposta da direção e da escola não a tinha.

Ao concluir o ensino médio, Lohanna continuou em busca de seu sonho: tornar-se professora. Aquelas experiências regulatórias e homofóbicas haviam ficado para trás. Agora a universidade não seria mais um problema para ela, pois era um lugar de produção de conhecimento e, como tal, era um lugar que a receberia e a formaria. Assim, Lohanna passou por duas experiências: a primeira foi a licenciatura em Letras na modalidade semipresencial, a qual foi cursada num campus destinado a tal finalidade, nos finais de semana, ofertada numa escola da cidade de Aquidabã por uma universidade privada do Estado de Sergipe; e  a segunda foi o bacharelado em Serviço Social,  na mesma instituição, modalidade e campus,  ambas cursadas quase paralelamente.

Passada a euforia inicial, ao matricular-se, Lohanna informou que gostaria de ser chamada pelo nome social, recebendo de imediato a negativa do diretor do campus em exercício, pois, segundo ele, aquilo seria impossível, na medida em que em seus documentos constava o nome de Adriano dos Santos; assim seria registrado no banco de dados da Instituição; entretanto, ela poderia tratar desse assunto diretamente com cada professor@. Esse foi o primeiro impacto ou um “choque de realidade” para Lohanna, percebendo que não seria tão fácil seu convívio ali.

Ao chegar para o seu primeiro dia de aula, Lohanna encontrou um aluno nos bebedouros de água. Este, ao perceber que passava por ali uma pessoa travesti, uma transexual, um corpo estranho, desviante do que representava feminilidade para ele, logo a questionou em público: “Vem cá o que é que você está fazendo aqui?”, Lohanna, ao tomar água, respondeu: “Assim como todo aluno, eu estou aqui pra estudar”. O aluno continuou a questioná-la: “Mas o que você está fazendo que não está na Cruz da Donzela?” (povoado do interior de Sergipe conhecido pela prostituição de travestis); de imediato, Lohanna lhe responde: “Não, em vez de estar na Cruz da Donzela, eu tive coragem de passar pelo ensino médio excludente, de sofrer preconceito, mas, mesmo assim, eu consegui e cheguei aqui. E hoje eu sou aluna igual a você”.

 

Esse foi o primeiro momento de preconceito vivido por Lohanna dentro da universidade, pois estava sendo questionada, como se aquele não fosse o lugar para um corpo transexual, e que seria mais apropriado para ela estar em outro lugar, como a Cruz da Donzela, se prostituindo. Percebe-se que, para o aluno, a universidade não é um lugar “social” para Lohanna, pois seu corpo é um corpo com feminilidade desviante das normas regulatórias de gênero, propondo o povoado Cruz da Donzela como natural para aquele corpo.

A partir da cena do primeiro dia de aula de Lohanna, pudemos perceber como a visão de gênero foi construída, pautada pela heteronormatividade, para demarcar os corpos e os lugares de homens e mulheres na sociedade, excluindo os que não se enquadram nesses moldes ou os que estão na fronteira, a partir do desenvolvimento de um discurso de normatização, não apenas quando se utiliza um ou outro polo da oposição, mas pela maneira que é colocado em prática, visando à padronização dos corpos masculinos e femininos. Também, propõe a reflexão quanto às políticas de enfrentamento ao preconceito, bem como para as necessidades das pessoas transexuais, pois a ausência de políticas públicas de inclusão resulta na exclusão.

Lohanna disse-nos que se sentia um ser “extraterrestre” na universidade, no início de sua formação em Serviço Social. Sentava na primeira cadeira da frente no cantinho da sala, esperando por todas as possibilidades de preconceito, pois “[…] todos saiam das salas para poder ver o bicho, o traveco, o travesti, o corpo estranho que estava na universidade […]”, repercutindo também na convivência dentro da sua própria sala. Ao realizarem trabalhos em grupos, @s alun@s se reuniam, e Lohanna sempre ficava sozinha, porque ninguém queria se juntar àquele ser “estranho”.

Os dias iam passando e Lohanna se sentindo um ser estranho naquele lugar. O horário do intervalo era o pior possível para ela, na medida em que uma simples ida ao shopping da universidade era incômodo: Todos olhavam, apontavam, cutucavam o outro, cochichavam. “Olha! É o travesti que tá fazendo Serviço Social, lá no Bloco B. Olha ali, ó! O traveco é aquele”. “Então eu ouvia sempre isso, cutucadas, olhares estranhos, como se eu fosse o extraterrestre naquele espaço”, confessa Lohanna.

Apesar de se sentir assim, Lohanna borrava as representações do que é ser homem e mulher naquele lugar, era um corpo que necessitava ser civilizado e governado, mas também era um corpo que possibilitava subversões.

Até aqui apontamos as significações de Lohanna sobre sua inclusão na universidade; mas, na sua vida universitária viria o segundo grande problema: o uso do banheiro. A escola que Lohanna estudava de segunda-feira a sexta-feira, como estudante de ensino médio – mesmo ainda se considerando homossexual, usava o banheiro feminino, já se sentia mulher, vestindo-se de forma andrógina – era a mesma escola que, no final de semana, a proibia de usar o banheiro feminino, haja vista que, nesse período, aquela escola se transformava numa universidade e, para a Instituição era Adriano dos Santos (nome de registro) que era ali matriculado, e não Adriana Lohanna dos Santos (nome social).

 

Daí, iniciam-se seus desafios de enfrentamento na universidade, pois, em suas palavras: “Por incrível que pareça, eu tive mais problemas  em relação à minha sexualidade, em relação ao respeito à minha identidade de gênero, na universidade do que no ensino médio”. Segundo ela, sua história é um processo inverso a de muitas outras transexuais, visto que Lohanna só se percebeu realmente transexual no ensino superior, estando em transição no ensino fundamental e concluindo no ensino médio, mas, a “pessoa trans, a menina Lohanna, ela veio completamente assumir a Lohanna no ensino superior”.

O uso do banheiro passou a se configurar como um grande problema quando Lohanna cursava o terceiro período do curso de Serviço Social. A universidade enviou-lhe um representante jurídico a fim de proibi-la de usar o banheiro feminino. O discurso do representante da universidade pautava-se na premissa de que ali a matrícula 2067890532 era do aluno Adriano dos Santos e que naquele espaço @s alun@s eram simplesmente meras matrículas, e em sua matrícula constava o nome de um aluno masculino; portanto, Lohanna deveria usar o banheiro masculino para não sofrer sanções disciplinares.

 

Esse discurso também foi reproduzido pelo líder d@s estudantes na sala de aula, expondo a aluna Lohanna ao constrangimento, conforme suas palavras: “‘Olhe está aqui que o aluno Adriano dos Santos, a partir de hoje, vai usar o banheiro masculino. Está proibido de usar o banheiro feminino’, isso em público”. Logo, Lohanna, com seu posicionamento de enfrentamento, respondeu que iria continuar a usar o banheiro feminino e que a expulsassem.

A universidade passou então a desenvolver norma regulatória de biopoder e da governabilidade no corpo de Lohanna, nesse caso, a proibição do uso do banheiro feminino. A construção do discurso sobre o corpo masculino e feminino sempre implica julgamentos de valor, situados social e culturalmente; e que masculinidades e feminilidades foram construídas para demarcar os corpos, o gênero e os lugares de homens e mulheres na sociedade, excluindo os que não se enquadram nesses moldes. O banheiro passa a ser uma “tecnologia” de construção de gênero e de discriminação.

 

O governo do corpo de Lohanna seria uma forma de gerir e direcionar suas condutas, reenquadrá-la no lugar em que ela “deveria” estar. Entretanto, Lohanna propunha uma desnaturalização desse corpo, a partir da resistência, visto que, para ela, usar o banheiro feminino, além de uma necessidade fisiológica, era um ato político, e, no seu relato, pondera e questiona: “Perceba que minha vida todinha rola na questão de usar o banheiro. Como é que a gente vai resolver isso? Como é que vai se resolver a possibilidade de entrar no banheiro? Então vamos mudar de nome”.

Para sanar a questão, Lohanna ajuizou uma ação requerendo a mudança de nome. Logo, percebeu que não adiantaria muito, pois mudar de nome não lhe garantiria o uso do banheiro, pelo fato de que seu uso é pautado pelo sexo. Como estratégia jurídica, Lohanna ajuizou outra ação pedindo, além da mudança de nome, também a mudança de sexo sem cirurgia, sendo, segundo ela, o primeiro processo desse tipo no Nordeste, ou seja, mudar o nome de Adriano dos Santos para Adriana Lohana, e do sexo masculino para feminino, instituindo-se, em suas palavras, uma “mulher de pinto no jurídico brasileiro”; depois de seis anos de tramitação do processo, em 2012, ela conseguiu a mudança de nome e de sexo sem cirurgia, mas já estava formada e fora da universidade que a proibia de usar o banheiro feminino.

O terceiro momento marcante na vida universitária de Lohanna foi sua atuação no componente curricular Estágio Supervisionado. Nessa disciplina, @s estudantes do curso de Serviço Social desenvolvem atividades supervisionadas em diversas instituições da comunidade externa, nas quais são acompanhas por profissionais que atuam nesses locais. Nessa fase, Lohanna passou, mais uma vez, pela experiência da transfobia, visto que nenhum e nenhuma Assistente Social quis supervisioná-la, relatando-nos uma das falas das assistentes sociais: “Mas, nunca que eu vou receber ele pra estagiar. Um homem quer ser mulher a pulso, o que é que as pessoas vão pensar disso. Que palhaçada! Eu vou estar aqui com um traveco atendendo meus usuários”.

Percebe-se, a partir dessa narrativa, que entra em cena o discurso da heteronormatividade, que impõe ao comportamento de Lohanna o status de desviante da norma, uma “aberração”, pois, desvia-se das normas de gênero. Para Lohanna, a partir da exclusão das profissionais, restou-lhe o não cumprimento desse componente curricular, o veto à iniciação da profissionalização, mais que isso, foi exercido o governo ou a gerência de até onde ela poderia ir pautada, principalmente, em certas verdades sobre seu corpo. Contudo, de uma coisa a Lohanna não abriu mão, a assinatura de seu relatório como Adriana Lohanna dos Santos, sendo-lhe sugerida pela coordenadora do curso, a inclusão entre parênteses de seu nome de registro.

 

A mesma imposição ao uso do nome de registro aconteceu com o trabalho de conclusão de curso (TCC), mas, desta vez, seria um ato político para Lohanna e, como tal, foi ao enfrentamento: “Eu saio Adriana Lohanna dos Santos daqui ou não saio. É uma questão de honra”, colocando por consideração à coordenadora do curso, um asterisco e uma nota com seu nome de registro para que conseguisse a aprovação da banca, em suas palavras: “[…] me reprovem e comprem a briga. Porque, naquela altura do campeonato, a universidade já estava famosa por ser a universidade transfóbica, que não deixou a Lohanna entrar no banheiro e, por conta disso, me fez entrar no movimento LGBT”.

Esses comportamentos e tentativas de fixar Lohanna nas normas regulatórias de gênero passaram a ser desenvolvid@s em seu processo formativo de forma explicita e implícita, muito embora, no caso de Lohanna, elas fossem evidentes, sendo o preço a pagar por perturbar as normas.

De um corpo estranho, excêntrico, não civilizado, desviante, Lohanna passou a deslocar, desestabilizar e problematizar as normas de gênero fixas e binárias naquela universidade. Embora tenha passado por diversas situações de preconceito, como narramos até aqui, ela também causou subversões no seu processo de formação. Ao provocar instabilidades no sistema de informação, direção, coordenações, docentes e alun@s, Lohanna confrontou o sistema heterossexual compulsório, propondo espaços de socialização que cruzassem fronteiras, o “entre lugares” ou “por ser” e, principalmente, ressignificações posicionamentos.

Para concluir, ensaio a escrita de alguns desafios curriculares e pedagógicos rumo à ampliação da complexidade das análises sobre a transexualidade: O primeiro desafio é entender a importância e a urgente necessidade de pesquisarmos mais acerca do universo transexual, para que possamos entender os corpos trans para além do “estranho” e “desviante”. Que os corpos trans sejam pensados simplesmente como corpos que podem ter diversas possibilidades de ser e estar no mundo, ou seja, desvincular a transexualidade do pênis e da vagina.

 

O segundo desafio é a desconstrução das abordagens de gênero pautadas nos papéis, comportamentos, atividades e funções de homens e mulheres, para uma abordagem relacional e performática dos corpos. O terceiro desafio é o desenvolvimento de uma formação inicial e continuada em gênero e diversidade sexual para gestor@s, docentes e demais profissionais das escolas. Acreditamos que o foco das intervenções pedagógicas devem ser primeiro de gestão pedagógica (equipe administrativa), didática (formação docente) e de intervenção (estudantes) para que de fato possamos evoluir no aprendizado com as diferenças.

NOTAS

[1] Entrevista narrativa realizada no mês de agosto de 2015. Adriana Lohanna dos Santos, morena, 29 anos, transexual, identidade de gênero feminina, heterossexual, graduada em Letras e Serviço Social e professora da rede Municipal de Educação de Lagarto (SE).

[2] Neste texto, optamos por utilizar a grafia “@” em lugar dos artigos o/a que tendem a definir e universalizar o masculino a partir do uso da linguagem discriminatórias, sexista e patriarcal, bem como a utilização dicotômica do masculino e feminino que também tende a fixar o gênero nessas duas vertentes, desconsiderando outras possibilidades de ser e estar.

O AUTOR

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Alfrancio Ferreira Dias é doutor em Sociologia e professor adjunto do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Departamento de Educação da Universidade Federal da Sergipe (UFS). Também é pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares sobre a Mulher e Relações Sociais de Gênero (NEPIMG/UFS). E-mail: diasalfrancio@hotmail.com

COMO CITAR ESSE TEXTO

DIAS, Alfrancio Ferreira. O processo formativo de uma transexual e o enfrentamento da transfobia. Revista Coletiva, Recife, n. 18, jan.fev.mar.abr. 2016. Disponível em: <>. ISSN 2179-1287.

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