Escola, homofobia e heteronormatividade
Rogério Diniz Junqueira
Historicamente, a escola brasileira estruturou-se a partir de um conjunto de valores, normas e crenças responsável por reduzir à figura do “outro” (considerado estranho, inferior, pecador, doente, pervertido, criminoso ou contagioso) quem não se sintoniza com os arsenais cujas referências são centradas no adulto, masculino, branco, heterossexual, burguês, física e intelectualmente “normal”.
Assim, a escola tornou-se um espaço em que rotineiramente circulam preconceitos que colocam em movimento discriminações de diversas ordens. Classismo, racismo, sexismo, heterossexismo, homofobia, capacitismo, entre outras formas de gestão das fronteiras da normalidade, fazem parte da cotidianidade escolar. Esses movimentos discriminatórios não são elementos intrusos e sorrateiros, pois, além de terem entrada franca, agem como elementos estruturantes do espaço escolar, onde são cotidiana e sistematicamente consentidos, cultivados e ensinados, produzindo efeitos sobre todos/as.
A escola é um espaço obstinado na produção, reprodução e atualização dos parâmetros da heteronormatividade – um conjunto de disposições (discursos, valores, práticas) por meio das quais a heterossexualidade é instituída e vivenciada como única possibilidade natural e legítima de expressão, como afirma o sociólogo americano Michael Warner em seu livro “Feer of a queer planet” (1993). Um arsenal que regula não apenas a sexualidade, mas também o gênero. As disposições heteronormativas voltam-se a naturalizar, impor, sancionar, promover e legitimar uma única sequência sexo-gênero-sexualidade: a centrada na heterossexualidade e rigorosamente regulada pelas normas de gênero, como chama a filósofa americana Judith Butler em seu artigo “Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do ‘sexo’” (2003).
Essas normas, quando fundamentadas na ideologia do dimorfismo sexual, crença na existência natural de dois sexos e na sua tradução automática em dois gêneros complementares e em modalidades de desejos igualmente ajustadas de modo binário e linear, agem como estruturadoras de relações sociais e produtoras de subjetividades e encontram, no campo da sexualidade reprodutiva, um dos mais poderosos argumentos para justificar tanto as teses naturalizantes acerca das identidades sexuais e de gênero quanto as violações dos direitos das pessoas que pareçam delas destoar.
A heteronormatividade está na ordem das coisas e no cerne das concepções curriculares; e a escola se mostra uma instituição fortemente empenhada na reafirmação e na garantia do êxito dos processos de heterossexualização compulsória e de incorporação das normas de gênero, colocando sob vigilância os corpos de todos/as. Histórica e culturalmente transformada em norma, produzida e reiterada, a heterossexualidade hegemônica e obrigatória torna-se o principal sustentáculo da heteronormatividade, como bem afirma a educadora brasileira Guacira Louro em seu livro “O corpo educado” (2009).
Não por acaso, heterossexismo e homofobia agem aí, entre outras coisas, instaurando um regime de controle e vigilância não só da conduta sexual, das expressões e das identidades de gênero, como também das identidades raciais. Por isso, em concordância com o que diz o professor de direito Daniel Borrillo no livro “Homofobia: história e crítica de um preconceito” (2001), podemos afirmar que o heterossexismo e a homofobia são manifestações de sexismo, não raro, associadas a diversos regimes e arsenais normativos, normalizadores e estruturantes de corpos, sujeitos, identidades, hierarquias e instituições, tais como o classismo, o racismo, a xenofobia.
É oportuno observar que o termo homofobia tem sido comumente empregado em referência a um conjunto de emoções negativas (aversão, desprezo, ódio, desconfiança, desconforto ou medo) em relação a homossexuais. No entanto, entendê-lo assim implica pensar o seu enfrentamento por meio de medidas voltadas sobretudo – ou apenas – a minimizar os efeitos de sentimentos e atitudes de indivíduos ou de grupos homofóbicos em relação a uma suposta minoria. Relacionar a homofobia simplesmente a um conjunto de atitudes individuais em relação a lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais implicaria desconsiderar que as distintas formulações da matriz heterossexual, ao imporem a heterossexualidade como obrigatória, também controlam o gênero, como ressalta Judith Butler.
Por isso, mostra-se mais adequado entender a homofobia como um fenômeno social relacionado a preconceitos, discriminação e violência voltados contra quaisquer sujeitos, expressões e estilos de vida que indiquem transgressão ou dissintonia em relação às normas de gênero, à matriz heterossexual, à heteronormatividade. E mais: seus dispositivos atuam capilarmente em processos heteronormalizadores de vigilância, controle, classificação, correção, ajustamento e marginalização, com os quais todos/as somos permanentemente levados/as a nos confrontar.
Dizer que a homofobia e o heterossexismo pairam ameaçadoramente sobre a cabeça de todos/as não implica afirmar que afetem indivíduos e grupos de maneira idêntica ou indistinta. Embora a norma diga respeito a todos/as, e seus dispositivos de controle e vigilância possam revelar-se implacáveis contra qualquer um/a, a homofobia não deixa de ter seus alvos preferenciais. As lógicas da hierarquização, da abjeção social e da marginalização afetam desigualmente os sujeitos. O macho angustiado por não cumprir com os ditames inatingíveis da masculinidade hegemônica não tenderá a ter seu status questionado se agredir alguém considerado menos homem. Pelo contrário, com tais manifestações de virilidade, além de postular-se digno representante da comunidade dos “homens de verdade”, ele poderá até ser premiado. Ele, para afastar ameaças a seus privilégios, terá à sua disposição um arsenal heterossexista socialmente promovido.
O preconceito, a discriminação e a violência que atingem homossexuais e lhes restringem direitos básicos de cidadania, agravam-se significativamente em relação a travestis e transexuais. Essas pessoas, ao construírem seus corpos, suas maneiras de ser, expressar-se e agir, não podem passar incógnitas, pois tendem a se mostrar pouco dispostas a se conformar à pedagogia do armário – o conjunto de práticas que prega as normas de gênero.
Situadas nos patamares inferiores da estratificação sexual, veem seus direitos serem sistematicamente negados e violados sob a indiferença geral, como afirma a antropóloga americana Gayle Rubin em seu artigo “Pensando sobre sexo: notas para uma teoria radical da política da sexualidade” (1984 [1992]). Nas escolas, elas tendem a enfrentar obstáculos para se matricular, participar das atividades pedagógicas, ter suas identidades respeitadas, fazer uso das estruturas escolares (como os banheiros) e preservar sua integridade física. A transfobia, não por acaso, é a expressão mais letal da homofobia.
O aporte da escola, com suas rotinas, regras, práticas e valores, a esse processo de normalização e ajustamento heterorreguladores e de marginalização de sujeitos, saberes e práticas dissidentes em relação à matriz heterossexual é crucial. Ali, o heterossexismo e a homo-transfobia podem agir em todos os seus espaços.
Pessoas identificadas como dissonantes em relação às normas de gênero e à matriz heterossexual serão postas sob a mira preferencial de uma pedagogia da sexualidade, geralmente traduzida, entre outras coisas, em uma pedagogia do insulto por meio de piadas, ridicularizações, brincadeiras, jogos, apelidos, insinuações, expressões desqualificantes e desumanizantes. Tratamentos preconceituosos, medidas discriminatórias, ofensas, constrangimentos, ameaças e agressões físicas ou verbais têm sido uma constante na rotina escolar de um sem-número de pessoas, desde muito cedo expostas às múltiplas estratégias do poder e a regimes de controle e vigilância.
As brincadeiras heterossexistas e homo-transfóbicas constituem-se em poderosos mecanismos heterorreguladores de objetivação, silenciamento, dominação simbólica, normalização, ajustamento, marginalização e exclusão. Essa pedagogia do insulto se faz seguir de tensões de invisibilização e revelação, próprias de experiências do armário. Uma pedagogia que se traduz em uma pedagogia do armário, que se estende e produz efeitos sobre todos/as.
Vigilâncias das normas de gênero
Embora para a instituição heteronormativa da sequência sexo-gênero-sexualidade concorram diversos espaços sociais e institucionais, parece ser na escola e na família onde se verificam seus momentos cruciais. Processos heteronormativos de construção de sujeitos masculinos obrigatoriamente heterossexuais se fazem acompanhar pela rejeição da feminilidade e da homossexualidade, por meio de atitudes, discursos e comportamentos, não raro, abertamente homofóbicos. Tais processos produzem e alimentam a homo-transfobia e a misoginia, especialmente entre meninos e rapazes.
Para eles, o “outro” passa a ser principalmente as mulheres e os gays e, para merecerem suas identidades masculinas e heterossexuais, deverão dar mostras contínuas de terem exorcizado de si mesmos a feminilidade e a homossexualidade. Eles deverão se distanciar do mundo das meninas e ser cautelosos na expressão de intimidade com outros homens, conter a camaradagem e as manifestações de afeto, e somente se valer de gestos, comportamentos e ideias autorizados para o “macho”.
Na escola, indivíduos que escapam da sequência heteronormativa e não conseguem ocultá-lo, arriscam-se a serem postos à margem das preocupações centrais de uma educação supostamente para todos/as. Tal marginalização, entre outras coisas, serve para circunscrever o domínio do sujeito “normal”, pois, à medida que se procura consubstanciar e legitimar a marginalização do indivíduo “diferente”, “anômalo”, termina-se por conferir ulterior nitidez às fronteiras do conjunto dos “normais”, de acordo com a antropóloga britânica Mary Douglas no livro “Pureza e perigo” (1976). A existência de um “nós-normais” não depende apenas da existência de uma “alteridade não-normal”: é indispensável naturalizar a condição de marginalizado vivida pelo “outro”, para afirmar, confirmar e aprofundar o fosso entre os “normais” e os “diferentes”.
Por meio da tradução da pedagogia do insulto em pedagogia do armário, estudantes aprendem cedo a mover as alavancas do heterossexismo e da homofobia. Desde então, as operações da heterossexualização compulsória implicam processos classificatórios e hierarquizantes, nos quais sujeitos ainda muito jovens podem ser alvo de sentenças que agem como dispositivos de objetivação e desqualificação: “Você é gay!”. Estas crianças e adolescentes tornam-se, então, alvo de escárnio coletivo antes mesmo de se identificarem como uma coisa ou outra.
Tais brincadeiras ora camuflam, ora explicitam injúrias e insultos – jogos de poder que marcam a consciência, inscrevem-se no corpo e na memória da vítima e moldam pedagogicamente suas relações com o mundo. Mais do que uma censura, traduzem um veredicto e agem como dispositivos de perquirição e desapossamento, como define o filósofo francês Didier Éribon no livro “Reflexões sobre a questão gay” (2008). E mais: o insulto representa uma ameaça que paira sobre todas as cabeças, pois, por exemplo, pode ser estendido a qualquer um que por ventura falhe nas demonstrações de masculinidade a que é submetido sucessiva e interminavelmente.
A pedagogia do armário interpela a todos/as. Ora, o “armário”, esse processo de ocultação da posição de dissidência em relação à matriz heterossexual, faz mais do que simplesmente regular a vida social de pessoas que se relacionam sexualmente com outras do mesmo gênero à medida que as submete ao segredo, ao silêncio e/ou as expõe ao desprezo público. Com efeito, ele implica uma gestão das fronteiras da (hetero)normalidade (na qual estamos todos/as envolvidos e pela qual somos afetados/as) e atua como um regime de controle de todo o dispositivo da sexualidade. Assim, reforçam-se as instituições e os valores heteronormativos e privilegia-se quem se mostra devidamente conformado à ordem heterossexista, bem como afirma a teórica de gênero americana Eve Sedgwick no livro “A epistemologia do armário” (2007).
A vigilância das normas de gênero cumpre papel central na pedagogia do armário, constituída de dispositivos e práticas curriculares de controle, silenciamento, invisibilização, ocultação e não-nomeação, que agem como forças heterorreguladoras de dominação simbólica, (des)legitimação de corpos, saberes, práticas e identidades, subalternização, marginalização e exclusão.
Educação de qualidade
Seria um equívoco pensar que heterossexismo, homofobia e transfobia se manifestam de modo fortuito ou isolado nas escolas, como uma mera herança cujas manifestações a instituição meramente admitiria e cujos efeitos dar-se-iam apenas aos indivíduos homossexuais ou transgêneros. A heteronormatividade está na ordem do currículo e do cotidiano escolar. A escola consente, cultiva e promove homo-transfobia e heterossexismo, repercutindo o que se produz em outros âmbitos e oferecendo uma contribuição decisiva para a sua atualização e o seu enraizamento.
Não raro também informados pelo racismo e pelo classismo, heterossexismo e homo-transfobia atuam na estruturação desse espaço e de suas práticas pedagógicas e curriculares, fabricando sujeitos e identidades, produzindo ou reiterando regimes de verdade, economias de (in)visibilidade, classificações, objetivações, distinções e segregações, ao sabor de vigilâncias de gênero que exercem efeitos sobre todos/as.
Ademais, a força da pedagogia do armário parece residir inclusive na sua capacidade de garantir a não-nomeação de suas violências, o silenciamento de seus alvos e o apagamento de seus rastros. Mencionar sujeitos e violações a que estão submetidos poderia implicar processos de reconhecimento não só de suas existências sociais, mas de suas condições como sujeitos de direitos – passo importante para se enfrentarem as hierarquias e os privilégios que os processos de invisibilização produzem ou alimentam.
Na esteira dessa pedagogia, é recorrente o entendimento de que respeitar o “outro” seria um gesto humanitário, expressão de gentileza, delicadeza ou magnanimidade. Uma espécie de benevolente tolerância que deixa ilesas hierarquias, relações de poder e técnicas de gestão das fronteiras da normalidade. Informadas por uma matriz de conformação, pessoas com distintos graus de preconceitos costumam se perceber dotadas de atributos positivos por crerem-se portadoras de certa sensibilidade em relação às vítimas – uma dose de compaixão, em função da qual o “outro” recebe uma aquiescente autorização para existir, em geral, à margem e silenciado.
Na escola, antes de falar em respeito às diferenças, vale questionar processos sociocurriculares e políticos por meio dos quais elas são produzidas, nomeadas, (des)valorizadas. Não basta denunciar o preconceito e apregoar maior liberdade: é preciso desestabilizar processos de normalização e marginalização. Muito além da busca por respeito e vago pluralismo, vale discutir e abalar códigos dominantes de significação, desestabilizar relações de poder, fender processos de hierarquização, perturbar classificações e questionar a produção de identidades reificadas e diferenças desigualadoras.
Qualidade na educação tornou-se uma palavra de ordem, em torno da qual existem entendimentos distintos. Há quem pense educação de qualidade como aquela que permite bom desempenho nos testes padronizados. Sair-se bem em um exame significa ter aprendido? Mesmo que a resposta pudesse ser afirmativa, teríamos que discutir se uma educação que garante o aprendizado do currículo formal, mas que, ao lado disso, promove preconceitos e discriminações seja uma educação de qualidade.
Especialmente na escola, é fundamental investir na desconstrução de processos sociais, políticos e epistemológicos por meio dos quais alguns indivíduos e grupos se tornam normalizados ao passo que outros são estigmatizados e marginalizados.
A escola é um espaço onde o naturalizado e tido como incontornável pode ser confrontado por pedagogias dispostas a promover releituras, reelaborações, diálogos e modos de ser, ver, classificar e agir mais criativos e plurais. Nela, outras possibilidades de currículo podem se articular a invenções de formas de (con)viver, ensinar, aprender, em favor da reinvenção e da dignificação humana e do mundo.
PARA SABER MAIS
BORRILLO, D. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Barcellona: Bellaterra, 2001.
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O AUTOR
Rogério Diniz Junqueira é doutor em Sociologia das Instituições Jurídicas e Políticas pelas Università Degli Studi di Milano e Macerata (Itália). Integra o quadro permanente de Pesquisadores do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
COMO CITAR ESSE TEXTO
SOUZA, Marcos Lopes de. É possível subverter as normas de gênero e de sexualidade na formação docente? Revista Coletiva, Recife, n. 18, jan.fev.mar.abr. 2016. Disponível em: <>. ISSN 2179-1287.