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Corpos fora do lugar [1]

 21 de dezembro de 2019 |André Melo Mendes

A primeira vez que entrei no Pavilhão dedicado à obra de Miguel Rio Branco, em Inhotim, fiquei bastante impressionado, de uma maneira que não ficava há muito tempo com um conjunto de fotografias. Ao longo das diversas vezes que voltei a Brumadinho (MG), acompanhando amigos, artistas e alunos, pude perceber uma repetição do meu espanto na face daqueles que entravam pela primeira vez naquela galeria.

As fotos que compõem essa galeria foram produzidas por Miguel Rio Branco no final dos anos 1970, em um bairro de Salvador, conhecido como Maciel, parte mais antiga do Pelourinho. Nessa época, o local estava bastante degradado e associado à prostituição.   

A apresentação de corpos decadentes, machucados, marcados por uma vida que está longe de ser cor de rosa, impacta os visitantes, principalmente aqueles mais sensíveis. Alguns saem logo da galeria, tentando deixar para trás aquele “pesadelo”. Entretanto, se o espectador, para além do choque inicial, tiver disposição para “ver” algo que não se encontra imediatamente no que se “olha” (numa visualidade explícita), ele poderá perceber que ali onde predomina a sombra, a escuridão, também há cor e passagens para outras possibilidades interpretativas.

Predominantemente, as imagens de Miguel Rio Branco ali expostas não são imagens que pretendem fazer uma única afirmação; são ambíguas, e não intencionam impor uma verdade ao espectador/leitor. Essa opacidade é importante porque faz com que o impacto inicial se estenda para além do mero efeito, retardando a interpretação de maneira que, se o leitor aceitar o convite, poderá chegar a um sentido que não seja óbvio e estimule seu pensamento e seus sentidos.

Quem não conhece a obra do fotógrafo espanhol radicado no Brasil pode supor que o choque inicial causado pelas suas imagens do Maciel esteja relacionado apenas com uma representação espetacular das desgraças dessa comunidade soteropolitana. Entretanto, arrisco a dizer que o estranhamento dos visitantes diante dessas imagens se deve ao fato de que eles estão habituados a se deparar, o tempo todo, em todos os lugares, apenas com belos corpos apolíneos, de maneira que a visão daqueles corpos marginais ali expostos lhes causa repulsa.

É comum que, quando o espectador é confrontado com certa parte da realidade com a qual não está acostumado – no caso, corpos nus de mulheres pobres, excluídas do modo de ser contemporâneo baseado no consumo, inclusive, do consumo ligado ao corpo – é “normal” que aconteça o choque, ainda mais se levarmos em conta quão incomum é a presença dessas pessoas em uma galeria de arte. 

O choque do leitor está relacionado a naturalização na nossa cultura do corpo branco, jovem, higienizado. Essa cosmetização do corpo, dominante na História da Arte, que se acentua ao final do século 20 e início do século 21, também na publicidade e nos meios de comunicação de massa, nos dá a impressão que um corpo belo, digno de apreciação estética, é esse, idealizado pelos gregos.

Miguel Rio Branco não está interessado nesses corpos. Seu interesse está nos corpos marginais. Corpos que têm gordura, que suam, que possuem marcas de violência. No ensaio sobre a comunidade do Maciel (1979), Miguel registra a vida dos habitantes do bairro mais antigo do Pelourinho em Salvador por meio de uma cartografia de corpos e cenários decadentes.      Sua lente não está interessada apenas nas prostitutas, há também homens e crianças, cachorros e outros animais coabitando uma paisagem ferida, mas nem por isso infeliz. 

Imagens escuras e fortes como os bons vinhos

As imagens que Miguel Rio Branco produziu sobre o Pelourinho são escuras e fortes como os bons vinhos tintos que ficam guardados por anos e, como eles, pedem certo tempo na sua apreciação. Esses vinhos, devido à sua complexidade, não devem ser degustados imediatamente, precisam de tempo, alguns necessitam decantar. Outros desses vinhos possuem certa acidez inicial que pode ser desagradável ao paladar, a princípio, mas que tem a função de aguçar ainda mais as papilas gustativas, permitindo a percepção de outros sabores, mais raros. 

Da mesma forma, as imagens de Miguel podem ser um pouco perturbadoras a um primeiro contato, mas, à medida em que se lhes dá tempo, podem se tornar mais interessantes. 

Parte desse interesse vem da sua densidade. Uma densidade que não permite que ela se entregue a uma primeira mirada; que exige que o leitor gaste tempo sobre sua superfície e mergulhe na sua visualidade em busca de conexões com outras imagens, com outros artistas, o que lhe permitirá antever possibilidades interpretativas que não são óbvias. Caravaggio e Goya são alguns dos artistas com os quais é possível estabelecer pontes e perceber relações.

Antes de se tornar fotógrafo, Miguel trabalhou com as artes plásticas, o que pode explicar sua familiaridade com o portfólio de pintores famosos e a influência deles no seu trabalho. Uma primeira aproximação possível com a história da arte pode ser percebida no diálogo das suas fotos com a obra de Michelangelo Mersi da Caravaggio (1571-1610). Não é necessário muito esforço para notarmos que existem vários pontos de contato entre as fotografias da galeria e a obra do mestre lombardo, especialmente no que se refere ao uso da luz, a escolha dos modelos e a predisposição em desafiar as convenções sociais. Sobretudo, podemos notar que as imagens de Miguel Rio Branco produzem no leitor/espectador uma reação física intensa, como as imagens de Caravaggio. 

A maneira dramática como o Caravaggio usou a luz para retratar suas figuras pode ser percebida no trabalho de Miguel quando ele escurece o fundo ao ponto de torná-lo negro e destacar apenas alguns pontos do quadro com luz. A luz nessas imagens de Miguel Rio Branco não suaviza imperfeições, não oculta nem camufla a realidade, atraindo o espectador para dentro da cena.

As pontes que as fotografias do Maciel estabelecem com a história da arte não se limitam às obras de Caravaggio. A maneira como Miguel retratou alguns dos seus modelos lembra também as pinturas de Francisco José de Goya y Lucientes (1746-1828), especialmente o tom adquirido pelas suas obras após a misteriosa doença que quase o levou à morte e que o deixou surdo em 1792. 

Apesar de Caravaggio questionar a representação idealizada renascentista, ainda é possível perceber em seus modelos traços de um corpo idealizado, qualidade essa que Goya definitivamente nega aos seus retratados, como se pode perceber, por exemplo, na      série Caprichos e em Black Paintings (Pinturas negras). 

A presença do grotesco, tanto na obra do pintor quanto do fotógrafo espanhol, é uma opção estética que contribui para subverter convenções socialmente estabelecidas, já que, a exibição nas galerias e museus de outros corpos que não aqueles perfeitos pode vir a funcionar como “uma radiografia inquietante e surpreendente do real”, na medida em que os eleva à condição de algo digno de ser visto/exposto. 

As deformações que Goya infligiu aos seus modelos foi o modo que ele encontrou para traduzir em imagens sua crítica aos vícios e torpezas humanas. Goya possuía uma postura pessimista com relação aos seres humanos, fruto de uma desilusão com os projetos iluministas que ele acreditou, apoiou e que, ao longo da sua vida, viu fracassarem. Miguel, por outro lado, concebe esse elemento “não civilizado” como natural da existência humana e o incorpora à sua iconografia. Nas fotografias do Maciel organizadas no “porão” da galeria reservada a Miguel Rio Branco em Inhotim, seus personagens não ocupam lugares de destaque na sociedade e o seu pessimismo está diluído, misturado a elementos que também trazem positividade para a vida dessas pessoas. 

Identidades 

Imagens são discursos que representam e significam a realidade, a maneira como elas narram as pessoas – sejam ricos, pobres, atletas ou prostitutas – contribui para a construção da identidade desses sujeitos e da própria sociedade. 

Vivemos em uma sociedade na qual predomina uma lógica binária no consenso social. Nesse consenso, é imposta a centralidade e superioridade de um grupo em detrimento daqueles que são entendidos como os “Outros”. Em geral os “Outros” são construídos de maneira homogênea e negativa em oposição ao “Nós” (grupo dominante). 

Se considerarmos que o sujeito é elaborado (e se elabora) por meio das formações discursivas sociais, o trabalho de Miguel Rio Branco ganha mais importância porque tensiona a predominância do modelo clássico, perfeito e magro, imposto pela visada eurocêntrica. Ao fotografar essa comunidade de excluídos e levá-los para dentro dos museus e galerias, Miguel dá visibilidade para um grupo que, de outra forma, não seria visto/percebido pela sociedade, contribuindo para o reforço positivo da identidade desses “Outros”. 

Para além de uma abordagem idealizada e tranquilizadora, o trabalho de Miguel pretende criar um estranhamento, um choque que contribui para enfraquecer a predominância do corpo apolíneo que se coloca como a principal (se não, única) referência de corpo capaz de proporcionar prazer e reconhecimento àqueles que o possuem. Ao fazer isso, suas fotos contribuem para a não estagnação de um determinado modelo de corpo, evitando a consolidação de um consenso sobre o corpo e estimulando o “perene inacabamento dos significados”.  

Notas

[1] Este texto é uma versão atualizada de um trabalho apresentado no V SIPECOM - Seminário Internacional de Pesquisa em Comunicação, nos dias 15 a 17 outubro de 2013.

O autor

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André Melo Mendes é professor do Departamento de Comunicação Social da UFMG. Vencedor do Prêmio Moinho Santista 2002 (Fundação Bunge) e do Prêmio Cecília Meireles 2008 (FNLIJ). Autor dos livros: A complexização do objeto artístico – uma análise da obra de Angela Lago – Editora UFMG, Mapas de Arlindo Daibert - Editora C/Arte e Metodologia para análise de imagens fixas - Selo PPGCOM/UFMG.

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