COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E DEMOCRACIA
Como a comunicação, a educação e a democracia se conjugam em nossas vidas e qual o papel de cada uma na construção de um mundo melhor?
Podemos pensar a comunicação como um dos espaços nos quais a democracia pode ser ampliada, materializada, já que a mídia – por exemplo – tem centralidade na vida política, econômica e sociocultural de uma sociedade, ao divulgar informações que podem ser fundamentais na tomada de decisões dos cidadãos, assim como na sua busca de direitos e de uma sociedade democrática.
Os meios de comunicação, hoje, substituem, de certa forma, a antiga Ágora grega – praça pública – onde os cidadãos discutiam e faziam política. É nesse sentido que ressaltamos a importância de garantir espaços midiáticos para a diversidade, para o contraditório, para a circulação de diferentes discursos, para a participação popular, permitindo a expressão e comunicação dos cidadãos, características de uma democracia sólida e que só pode acontecer quando há informação de qualidade. E a cobrança de meios e informações de qualidade depende da participação e do nível de educação da sociedade.
Juan Díaz Bordenave, um dos pioneiros do pensamento latino-americano na Comunicação, destaca que “a participação é um processo de desenvolvimento da consciência crítica e de aquisição de poder” que pode transformar as pessoas, antes passivas em ativas e críticas. Para o autor, a participação é uma necessidade fundamental do ser humano.
Ressaltamos, porém, que existem vários tipos e níveis de participação, que nem tudo é participação e que ela não pode ser vista como solução para tudo. Quando ela mobiliza recursos, ferramentas, sujeitos para exercitarem sua cidadania e cobrarem seus direitos, pode ser considerada uma forma de poder, mas apenas assim. Ou seja, há condições para que ela aconteça. Nesse sentido, a participação é um caminho de empoderamento da sociedade.
E à medida que os sujeitos se tornam mais críticos, tendem a participar mais, a partir de diversas formas que vão de mobilizações nas redes sociais e protestos nas ruas a análises críticas dos meios, mensagens e contextos em que vivem.
Sobre esse contexto, inclusive, é importante perceber que quanto mais os cidadãos aprendem a conhecer a sua realidade, maior é sua chance de participação. É preciso que eles consigam acessar informações de qualidade e canais de reivindicação para tomarem decisões e participarem efetivamente na construção de uma democracia. De acordo com Claude-Jean Bertrand, especialista francês em ética jornalística, “Não pode haver democracia sem cidadãos bem informados; e não pode haver tais cidadãos sem mídia de qualidade”.
Importante ressaltar que falamos de qualidade da informação tendo como parâmetro o respeito aos direitos humanos e à deontologia jornalística, entre outros pontos.
Para José Jorge Barreiros, Sociólogo de comunicação e cultura, a liberdade, a democracia e a cidadania dependem de informação e comunicação, entendidas – junto com a mídia – como dimensões da vida pública em democracia. Não é possível pensar em democracia atualmente sem levar em conta a contribuição da mídia, da informação, da comunicação. Elas são interdependentes e a forma de atuação da mídia, o modo como tudo isso se relaciona acaba por ser fator de viabilidade do sistema democrático e possibilidade de exercício da cidadania.
Mas se é impossível falar em democracia sem levar em conta os meios, vale nos questionarmos como é nossa relação com eles. Somos apenas consumidores(as) de informação e entretenimento (sem/com pouca criticidade e sem levar em conta nossos direitos) ou cidadãos/cidadãs consumidores(as) (que consomem a mídia de forma crítica, criativa e autônoma)?
Como nos relacionamos com a mídia
A maneira como acessamos, transmitimos e elaboramos informações e saberes sobre o mundo tem sido cada vez mais conectada com aquilo que recebemos, aprendemos e apreendemos dos meios de comunicação, das redes sociais. A presença da mídia e das novas tecnologias em nossas vidas acaba por influenciar não apenas nosso modo de ver o mundo, como modifica a forma como nos relacionamos com outros sujeitos e lidamos com a noção de espaço e tempo.
Ora, se nós “lemos” o mundo pelo filtro da mídia, é preciso perceber esse filtro e identificar como é feita essa reinterpretação/tradução do mundo. É preciso estudar, analisar criticamente os meios, perceber suas ideologias, como influenciam o público, quais são suas responsabilidades, se/como prestam contas com a sociedade.
Hoje vivemos em um novo ecossistema comunicacional saturado de informação e, também, desinformação. Segundo Aguaded e Romero-Rodriguez, pesquisadores de educação e mídia, esse ecossistema está “infoxicado”, o que nos obrigaria a fazer uma espécie de “infodieta” ou uma “ecologia dos meios”, visto que a internet não trouxe apenas uma mudança de telas ou plataformas, mas uma modificação nos fluxos comunicativos. Além disso, a massificação da internet, para além do consumo excessivo de conteúdos “pseudo-informativos” trouxe consigo o aprofundamento da crise dos meios tradicionais e uma confusão nos processos de tomada de decisão pela sobresaturação de informação.
Como percebemos, o excesso de informações nem sempre torna um sujeito melhor informado, mas pode vir a deixá-lo “infoxicado”. Como lidar com este contexto, este ecossistema que traz por um lado um excessivo consumo de informações – muitas vezes desimportantes – e, por outro, a falta delas ou do conhecimento sobre como acessar as informações corretamente?
Ao nosso ver, a resposta está na educação e, no caso específico, na educação midiática ou literacia midiática, educomunicação, entre outros termos, trabalhada como política pública e desenvolvida desde a educação infantil. Ela pode vir a ser uma forma de ocupar o vazio deixado pela mídia, quando não reflete e não faz uma autocrítica de si própria nos seus mais diversos espaços.
Isso não quer dizer que os meios não tenham responsabilidades e prestação de contas a fazer com a sociedade. Pelo contrário. Mas só uma sociedade educada política e midiaticamente pode cobrar essas contas.
Não somente, mas também, uma sociedade educada midiaticamente se reúne em organizações e movimentos, cobra, participa, demanda o trabalho de organizações não-governamentais, grupos de pesquisa e também observatórios de mídia e imprensa – entre outras associações – e reconhece as ações que têm sido feitas em torno do assunto. Ações essas, inclusive, que deveriam ser mais valorizadas e ampliadas, recebendo apoio e suporte público.
Voltando a Aguaded e Romero-Rodríguez, os autores defendem não apenas uma “infodieta” para livrar os cidadãos da “infoxicação” dos meios, mas também uma “comunicação lenta”, uma metáfora do movimento alimentar “slow food”, buscando o tempo de degustação de cada alimento ou, neste caso, de cada mensagem, das informações, possibilitando com isso maior tempo de leitura (crítica) e reflexão sobre elas. Ressaltam também a necessidade de se reformular os meios a partir da cobrança da sociedade, que também demandaria políticas públicas de literacia midiática e instâncias de leitura e crítica midiática que tornassem transparente o que a própria mídia não faz sobre seus processos, o que poderia resultar em sujeitos mais participativos, críticos e criativos em sua relação com os meios.
Lembramos aqui Paulo Freire, quando diz que “a compreensão crítica do ato de ler, que não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, se antecipa e se alonga na inteligência do mundo. A leitura do mundo precede a leitura da palavra (…)”. O educador diz ainda que “a compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto”.
É neste ato de leitura e do olhar que colocamos sobre as coisas, que damos sentido ao mundo. Como a mídia passou a ser a principal produtora de sentido no contexto em que vivemos, é preciso um olhar mais consciente em relação às mensagens que recebemos diariamente dos meios. É preciso uma literacia midiática.
O que é literacia midiática?
O termo literacia vem sofrendo “atualizações” com o desenvolvimento das tecnologias e dos meios de comunicação, mudanças sócio-culturais, ampliação de conhecimento acerca dos direitos, etc. Há muito que não é visto apenas como uma competência para ler e escrever (o que acontecia, sobretudo, em um contexto ainda voltado ao impresso).
Hoje temos termos como News Literacy, Information Literacy, Digital Literacy, Media and Information Literacy (para falar dos termos em inglês), assim como Literacia Midiática, Alfabetização Midiática, Educomunicação, Educação para a Mídia.
Eles possuem orientações semelhantes, mas particularidades. E são desenvolvidos de acordo com seus contextos ou em busca de uma maior especificidade para aquilo que é observado. Não podemos esquecer também que, para além do contexto, a escolha de um ou outro termo tem a ver com questões políticas, interesses e prioridades.
Apesar de reconhecermos a especificidade de cada um, o que defendemos é que eles podem e devem dialogar e que, mais que sua definição, é importante perceber suas contribuições, objetivos, visão de mundo e possibilidade de alcançarem uma sociedade mais empoderada em sua relação com os meios e os processos comunicacionais, uma sociedade mais literada midiaticamente.
Para pesquisadores de Comunicação de Portugal, no documento Educação para os Media em Portugal, uma definição para o conceito seria:
O conjunto de processos, conteúdos e iniciativas tendentes a promover o uso esclarecido, a compreensão crítica e a atitude activa e criativa face à informação e aos media. Um trabalho a este nível envolve também o desenvolvimento de capacidades de produção, criação e expressão e a promoção de competências relacionadas com a pesquisa, selecção, análise, organização, contextualização e utilização da informação relevante para as situações do quotidiano e da participação da vida social. Nesse sentido, visa favorecer uma melhor comunicação e uma cidadania mais consciente e participativa.
Reforçamos aqui que não basta ter acesso, mas que é preciso problematizá-lo e pensar de qual acesso estamos falando, quem acessa; é preciso resolver a questão da desigualdade nesse acesso. E mais ainda: como, de onde, por que, para que e com que consequência se acessou.
Ressaltamos também que a literacia midiática e os processos comunicacionais não são apenas aqueles mediados pela mídia, por isso não se deve reduzir a importância do analógico, das relações interpessoais, um ponto que os estudos de comunicação muitas vezes esquecem. Essa relevância dada à comunicação como um processo mais amplo, podemos encontrar na Educomunicação, que busca o diálogo e a horizontalidade das relações baseando-se na ideia de que todos podem aprender e ensinar, todos têm o que dizer e os processos comunicativos ajudam a compartilhar saberes e construir conhecimento coletivamente. Ela se baseia na defesa dos direitos humanos e na democracia participativa.
Para a Associação Brasileira de Pesquisadores e Profissionais em Educomunicação - ABPEducom:
A Educomunicação é entendida como um paradigma orientador de práticas sócio-educativo-comunicacionais que têm como meta a criação e fortalecimento de ecossistemas comunicativos abertos e democráticos nos espaços educativos, mediante a gestão compartilhada e solidária dos recursos da comunicação, suas linguagens e tecnologias, levando ao fortalecimento do protagonismo dos sujeitos sociais e ao consequente exercício prático do direito universal à expressão.
De acordo com Ismar Soares, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP), a Educomunicação é composta de várias áreas que vão da educação para a comunicação e a tradicional leitura e críticas dos meios à expressão comunicativa através das artes; vai da mediação tecnológica na educação à pedagogia da comunicação, que põe o foco na didática e no trabalho integrado de educandos e educadores; inclui a gestão da comunicação no ecossistema comunicativo, com a análise das melhores intervenções para melhorar a comunicação e também leva em conta a reflexão epistemológica sobre o próprio fenômeno.
Para Soares, a Educomunicação é:
O conjunto de ações voltadas ao planejamento e implementação de práticas destinadas a criar e desenvolver ecossistemas comunicativos abertos e criativos em espaços educativos, garantindo, desta forma, crescentes possibilidades de expressão a todos os membros das comunidades educativas.
Independentemente do conceito com o qual se trabalhe, porém, defendemos que sejam entendidos no âmbito e no contexto dos direitos humanos, inclusive levando-se em consideração o direito à participação de crianças e adolescentes, não apenas de fruição dos meios, mas também de produção, o que é ressaltado pela Convenção dos Direitos das Crianças.
Ademais, salientamos a importância de não se apontar a escola como a única responsável pela literacia midiática, uma tendência que podemos ver em estudos, falas de especialistas e senso comum, documentos decorrentes de encontros, etc.
O primeiro documento mundial a fazer referência à necessidade de uma educação para a mídia, por exemplo, a Declaração de Grunwald, de 1982, apesar da lucidez de chamar a atenção para a necessidade de se preparar os jovens para viverem em um mundo de imagens, palavras e sons cada vez mais poderosos e de haver políticas públicas para a formação em relação a uma compreensão crítica da mídia e seus processos, coloca a “educação para a mídia” como uma responsabilidade quase que exclusiva da escola e isso não pode ser visto desta maneira sob nosso ponto de vista.
Apesar da relevância da escola e das instituições educativas, em geral, toda a sociedade deve estar imbuída dessa educação, dessa literacia. E isso abrange famílias, comunidades, governos, legisladores, universidades, operadores de Direito e, reforçamos, observatórios de mídia e imprensa, que podem contribuir com o material que produzem a partir de análises críticas da mídia, dessa forma desmontando e tornando transparente a maquinaria e os processos da mídia. Transparência essa fundamental em um ambiente democrático e na busca de direitos.
Para saber mais
AGUADED, Ignacio; ROMERO-RODRIGUEZ, Luis M. Mediamorfosis y desinformación en la infoesfera: Alfabetización mediática, digital e informacional ante los câmbios de hábitos de consumo informativo. Revista in The Knowledge Society – EKS, Vol. 16, Nº 1 (2015). Disponível em http://dx.doi.or/10.14201/eks2015614457
BARREIROS, José Jorge. Democracia, Comunicação e Media. Lisboa. Editora Mundos Sociais, 2012.
BERTRAND, Claude-Jean. A Deontologia dos Meios. Colecção Comunicação. Coimbra: Minerva Coimbra, 2002.
BORDENAVE, Juan E. Díaz. O que é participação. São Paulo: Edições Loyola, 1994.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989.
PARENTE, Cristiane. Observatórios de Media e Imprensa – Espaços de participação e literacia mediática em Portugal e no Brasil. Tese de Doutorado em Ciências da Comunicação. Braga: Universidade do Minho, 2019.
PINTO, Manuel (Coord.); Pereira, Sara; Pereira, Luís; Ferreira, Tiago Dias. Educação para os Media em Portugal: experiências, actores e contextos. Braga: CECS/UMinho, 2011
SOARES, Ismar de Oliveira. Educomunicação – O conceito, o profissional, a aplicação. Contribuições para a reforma do Ensino Médio. São Paulo: Paulinas, 2011.
A autora
Cristiane Parente é Doutora em Ciências da Comunicação e Investigadora do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho. Mestre em Educação pela Universidade de Brasília, consultora e assessora em projetos de Comunicação e Educação e sócia-fundadora da Associação Brasileira de Pesquisadores e Profissionais em Educomunicação (ABPEducom).