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A CAPA QUASE NUNCA PRETA DA VOGUE

Jornais, cinemas, telenovelas e publicidade construíram tipos fixos para representar a negritude – neles, não há espaço para pessoas autônomas ou majestosas.

27 de setembro de 2019 | Fabiana Moraes

Como se desmantela uma bomba?

Com apuro, técnica, destreza. Com uma enorme força e paciência.

Mas nem toda bomba pode ser desmantelada: algumas precisam, necessariamente, serem explodidas, levando consigo a normalidade estabelecida. Para isso, é preciso apuro, técnica, destreza, força, paciência e ainda a recusa em ser, mais uma vez, didático quando se está sob ataque.

Há décadas que movimentos vários tentam desarticular a trama enredada do racismo brasileiro: conquistam a duras penas alguns espaços, conseguem pautar a política institucional, furam bloqueios geracionais, etc. Por outro lado, precisam combater a intensa produção e reprodução de estereótipos e distorções, levados a público principalmente através do popularíssimo discurso midiático. Eu poderia aqui citar diversos meios — cinema, publicidade, novelas, games — como instrumentos de propagação destas problemáticas visibilidades. Vou me ater, porém, a um exemplo poderoso que condensa jornalismo, publicidade e moda: a mítica revista Vogue.

Recomendo que o texto não seja lido em uma cadeira de sinhá, seja ela simbólica ou real: não é conforto o que se pretende aqui. Também não há a intenção de desmantelar bombas.

Comprei muitas revistas Vogue durante a vida. Como jornalista, cobri moda e suas fashion weeks durante anos e até hoje me interesso pelo tema: a criação, a beleza, a estranheza, o sonho – está tudo ali, em linha e tecido.  A revista trazia nacos de um outro imaginário com seus seres esvoaçantes, batons cor de sangue, fotografias surreais. Comprei várias com o meu salário de garçonete, primeiro emprego conseguido aos 18 anos, quando havia acabado de entrar no curso de jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco. No bar, recebíamos o salário semanalmente.

 

Na primeira vez em que fui paga, reservei a maior parte do dinheiro para minha mãe, mas guardei algo em torno de R$ 20. Fui até uma banca na Conde da Boa Vista e comprei uma Vogue. Voltei de ônibus para o conjunto habitacional no qual morava, Dom Helder Câmara (em Jaboatão dos Guararapes) com suas páginas abertas no meu colo. Há 25 anos, eu olhava os ensaios fotográficos fantasiosos de David LaChapelle e Annie Leibovitz e adorava aqueles deslocamentos da realidade. Eram obras de arte que eu podia acessar.

Minha entrada, no entanto, só era permitida até ali, como espectadora de uma outra vida – ou melhor, como espectadora de um tipo muito especial de pessoas, afinal eram elas que apareciam naquelas páginas brilhantes. Não estava claro, ainda para mim, mas aquela revista me contava, além de moda, muito sobre a história do Brasil. Vogue e suas pares nos exibiam – e ainda o fazem – uma narrativa não somente sobre quem merece ser visto, mas principalmente sobre quem não merece. Quem entrava na festa e quem não era convidado. Racismo, classismo e mesmo o machismo passavam por ali. Eram os filtros.

Foi justamente uma festa, realizada em fevereiro de 2019, que reacendeu, 25 anos depois, as imagens da Vogue para mim.  Na verdade, não há aqui um preciso “reacendimento”, no sentido de que essas imagens continuaram circulando o meu – e o seu – cotidiano. Mas, agora, naquela festa, elas estavam corporificadas para além do papel, uma espécie de live action performada não só por modelos de batom cor de sangue, mas também por aqueles e aquelas que produziam as imagens nas quais esses batons e modelos apareciam. 

A celebração contava com diversas mulheres vestidas de “baianas”, em sua maioria negras, que tinham como função receber convidados e fazê-los sentirem-se confortáveis naquele território mídia-mitificado, a Salvador do Senhor do Bonfim. Parte dessas baianas surgiu em imagens diversas publicadas nas redes sociais, disparando rapidamente a sensação de déjà vu: nelas, víamos as convidadas sentadas em cadeira de espaldar alto cercadas pelas mulheres chamadas a servir;  víamos ainda a dona da festa, a ex-editora da Vogue nacional, Donata Meirelles, em pose semelhante. Muitos sorrisos, muitas evocações. No fim, a festa de aniversário de Donata também falava sobre a história do Brasil.

É preciso dizer, encarar, que essa história é em grande parte contada por nossa mídia, uma instituição permeada por uma lógica exclusivista, pouco generosa no que se refere ao mostrar a outra e o outro. Essa afirmação se comprova, por exemplo, tanto no fato de pessoas negras só surgirem em revistas de moda de maneira rara (veremos mais à frente) quanto nas formas encontradas pelas editoras da Vogue em defender o colonialismo da festa. 

Na tentativa de realizar uma conexão direta com as produtoras das imagens da revista – elas também protagonistas de algumas das imagens - participei de algumas interações/debates nas redes sociais das mesmas. Daniela Falcão, executiva da Edições Globo Condé Nast, editora que publica a Vogue no Brasil,  insistia que não havia nada de errado na presença daquelas mulheres vestidas com trajes do período escravocrata e recebendo os convidados na festa. Era, me disse, uma homenagem à Bahia, sua terra natal. Apontei que, ali, elas atuavam na velha condição de serviçais. A executiva, uma mulher não branca, devolveu: “mas elas recebem turistas no aeroporto de Salvador, qual o problema?”

Usava um exemplo de servidão para justificar outro. É um pouco de nossa naturalização dessa condição tão propagada em imagens: as baianas, quase todas mulheres negras, são doces, ou melhor, na construção mítica colonial, são dóceis. Agradam no papel de receber.

Outras mulheres, estas brancas, lembraram, na mesma rede social, que aquelas imagens não falavam sobre racismo e saudade da escravatura: tratava-se apenas de reverência a uma tradição, a uma ancestralidade. De fato, é tradição, no Brasil, mulheres negras receberem o menor salário do mercado (homens brancos recebem 63% a mais, em média) e que 90% delas ocupem os postos de empregadas domésticas.  

 

Mais: vale saber, se há um desejo em mostrar a ancestralidade negra, por qual razão jornais, revistas, televisões, cinema, etc., preferiram representar o escravo e a escrava e não os tantos reis e rainhas africanos e africanas. Por qual razão, afinal, as imagens de servidão foram aquelas que predominantemente interessaram?

Mulheres negras que servem, que cuidam, que são sorridentes e dóceis, estão impregnadas em nosso imaginário, este talhado pelas imagens/discursos que consumimos cotidianamente. Quase todas as manhãs, vemos a apresentadora Ana Maria Braga, branca, sendo ladeada por duas mulheres negras, Valéria da Silva e Maria Ribeiro, que a ajudam na cozinha, “silenciosas”, como diz uma matéria publicada no jornal carioca Extra. Milhões de espectadores aprendem ali mais um pouco sobre essa injusta história do Brasil. Valéria e Maria são, como tantas  outras mulheres negras que atuam servindo, “anjos”, queridas, e, claro, coadjuvantes.

Na revista Vogue Brasil, vemos imagens bastante parecidas. No ensaio Glamour Old School (edição de maio de 2013), há uma modelo muito delgada, branca, sendo cuidada por uma mulher negra de pequeno porte. A ironia e a violência repousam ainda no fato de a capa da edição de maio trazer a modelo negra Naomi Campbell. Mas, se Naomi está na capa, a Vogue não pode ser racista, confere? É aí que mora a perigosa operação retórica: a presença pontual de mulheres negras na revista (aqui nos servindo como exemplo para pensar em um ambiente midiático  permeado por um racismo estrutural e estruturante) serve como uma espécie de cano de escape para aliviar tensões que anos de invisibilização criaram.

 

Serve poderosamente para que a revista se esquive de se entender como produtora e reprodutora de nossa falta de cidadania visual (termo empregado pela pesquisadora Rose Melo Rocha no livro Estéticas Midiáticas e Narrativas do Consumo). A Vogue America tinha nada menos que 89 anos de circulação quando colocou pela primeira vez em sua capa uma mulher negra, sozinha: em 1974, Bervely Johnson furou o bloqueio do que era visto como “ o normal” (pessoas brancas) e repousou sua face em milhares de bancas de revista. A vista como muito moderna Vogue Paris só trouxe uma negra pela primeira vez em 1988 — e ainda se mostra quase hermética no momento de repetir o feito. A Vogue britânica demorou 102 ANOS para colocar uma mulher negra na capa: só em 2018, na edição de setembro, uma mostrou sua melanina ali. Foi Rihanna, com todo o peso de seu capital, quem conseguiu furar esse imenso bloqueio.

No Brasil, país no qual mais da metade da população se declara preta/parda, a Vogue passou 36 anos para finalmente trazer uma mulher negra, sozinha, na capa: foi a pernambucana Emmanuela de Paula, que aparece na foto usando branco, os cabelos lisos (edição de janeiro de 2011). Na chamada, um político, mas aqui completamente esvaziado, “black is beautiful” anuncia uma edição apenas com modelos negros e negras. A Vogue repetia as famosas “black issues” das pares estrangeiras e, parece, acreditou ali ter decretado que evitar a pele escura nas suas páginas era coisa do passado. 

Mas não foi bem assim. Um artigo apresentado no 5 Congresso Científico Têxtil e Moda, realizado em São Paulo em 2017, analisou a Vogue Brasil durante dois períodos — 2009 a 2012 e 2013 a 2016. Foram 96 exemplares. As pesquisadoras Ana Martins e Julia Pasqualinotto queriam verificar a presença de mulheres pretas nas edições. No ano em que estampou “black is beautiful” com Emmanuela, a Vogue dedicou todas as outras 11 capas a modelos brancas. Em 2009, todas as 12 foram para mulheres brancas. Em 2010, apenas uma capa traz uma mulher negra — que é vista em meio a outras, brancas. O mesmo aconteceu em 2012 (após decreto “black is beautiful”, vejam só). A escassez de pessoas negras se repete em todos os anos posteriores, apesar de uma nova black issue (edição 413) ser lançada em janeiro de 2013. A chamada: “Joan Smalls, a n. 1 do mundo, é negra. Esta edição também!”.

 

Como se vê, a presença de uma negra precisa ser especificada, dada a sua raridade. É aí que entra a operação de exotificação, tão comum no ambiente midiático e vista em diversos momentos na revista — um ensaio trazendo modelos na África é um triste exemplo da participação negra na tal festa. Todo o barulho provocado pela festa de Donata nos mostra que, apesar das recusas em se saber reproduzindo atos racistas, imprensa e outros meios midiáticos não podem fingir que não há um enfrentamento lá fora, e que não se pode continuar a usar a figura e a história das pessoas — negras, indígenas, transsexuais, etc — como cenários.

 

Não se pode insistir com a percepção de um ser universal normal — aquele que estampa com folga as capas da Vogue — enquanto os outros são exóticos e merecem edições especiais, não participando do cotidiano, ou seja, da naturalidade. Seria ótimo se a revista seguisse o exemplo da National Geographic, que veio a público e pediu desculpas pelo racismo praticado em sua linha editorial durante décadas: tiveram a coragem de apertar o botão e explodir sua bomba retórica para refundar o discurso da publicação.

Enquanto isso não acontece, Vogue e um vasto segmento da moda e de seu jornalismo especializado seguem caducando, desconectadas do ao redor. Durante toda discussão provocada pela festa pobre, foi impossível não lembrar das mulheres que entrevistei nos banheiros da Bienal em 2010, quando acontecia mais uma edição da São Paulo Fashion Week. Cumpriam a função da limpeza e varrição e andavam com tênis rasgados, roupas compradas em bazares de igrejas (não, não era “garimpo em brechó”) e viviam a cerca de três horas dali. Jennifer, Taynara, Telma, Joice, Nildes, Maria Lúcia: ganhavam entre R$ 24 a R$ 38 reais por dia e eram quase invisíveis no meio daquela massa que ou já fazia parte da festa da visibilidade ou lutava para entrar nela.

 

No caso delas, não havia nem mesmo o micróbio desse desejo, pois eram constantemente ensinadas que seu espaço era, no máximo, ali, nos banheiros, longe do glamour. Elas foram as protagonistas de uma reportagem que escrevi naquela cobertura da semana de moda, algo que me mostrava, novamente, que um assunto considerado frívolo na verdade agrega lutas sociais de ordens diversas.

A mídia massiva tem, em um país de educação fraturada como o Brasil, papel pedagógico, logo seu conteúdo precisa ser levado a sério tanto por quem o produz quanto por quem o consome. Precisamos nos perguntar, por exemplo, por qual razão a Helena protagonizada por Taís Araújo no horário nobre global (Viver a vida, 2009) ter sofrido chuvas de críticas. Era a primeira negra realizando o papel da famosa personagem do autor Manoel Carlos. A Taís escravizada e tantas vezes nua em Xica da Silva (1996) foi mais poupada.

Não é mais possível deixar que se instrumentalize a cor de quem ganha menos e morre mais no Brasil, que higienizem a escravidão com a desculpa de reverenciar tradições. A mídia tem um papel importantíssimo nessa reinauguração de novas formas de mostrar, de exibir, de contar. Para isso, precisa se implicar e entender que ajudou a fortalecer um leque de tipos fixos para dar conta de uma população heterogênea e dona de uma história rica, plural. Tem o papel de desarticular aquilo que Grada Kilomba (em O Projeto Desejo) , citando Frantz Fanon, observou: “Eu não posso ir ao cinema. Eu espero por mim: ladrões, meretrizes, traficantes”.

 

...E os escravos e as negras robustas, engraçadas e dóceis. E a “mulata pra fuder” e a “negra pra trabalhar”, como escreveu Gilberto Freyre.

 

Quais as implicações de mostrar uma população de maneira não estigmatizada e/ou independente?  Existem, nesse momento, milhões de pessoas interessadas em desmantelar essa bomba – e elas encontrarão suas próprias maneiras de a isso responder.

A autora

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Fabiana Moraes é professora do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco. Jornalista e doutora em Sociologia, tem pesquisas acadêmicas e reportagens voltadas para a questão da hierarquização social com foco na (in)visibilidade de grupos vulneráveis. É vencedora de três prêmios Esso: Os Sertões (2009; O Nascimento de Joicy (2011) e A Vida Mambembe (2007).  Recebeu ainda os prêmios Petrobras de Jornalismo (2015) com a série Casa Grande e Senzala; o Embratel (2011) com o especial Quase Brancos, Quase Negros e três prêmios Cristina Tavares (Sindicato dos Jornalistas de Pernambuco) com Os Sertões, Quase Brancos Quase Negros e A História de Mim (2015). Lançou cinco livros: Os Sertões (Cepe, 2010), Nabuco em Pretos e Brancos (Massangana, 2012); No País do Racismo Institucional (Ministério Público de Pernambuco, 2013); O Nascimento de Joicy (Arquipélago Editorial, 2015); Jormard Muniz de Britto - professor em transe (Cepe, 2017). Realizou o documentário Dia de Pagamento (2015) e investiga narrativas midiáticas, jornalismo, subjetividade e a relação entre celebridade e pobreza.

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