Memória
Estudos de gênero em rede: a importância da Redor
Lembrando o passado: da luta por direitos aos estudos da mulher
Maria Eulina Pessoa de Carvalho
As mulheres tiveram acesso à educação gradativamente, a partir do século XIX. As alunas necessitavam de professoras, no contexto da separação dos sexos e da distinção de gênero dos currículos. A coeducação (escolas mistas e currículos únicos) vai avançando ao longo da primeira metade do século XX, com o aumento do ingresso das meninas.
No Brasil, as mulheres só ingressaram massivamente no nível superior na década de 1970; mesmo assim, em áreas do conhecimento e cursos feminizados, como Serviço Social, Enfermagem, Pedagogia, Letras e outras licenciaturas. No final da década de 1990, elas já eram pouco mais da metade das matrículas e conclusões em todos os níveis de escolaridade.
Porém, a participação de mulheres e homens na educação superior, como discentes e docentes, na formação, pesquisa e gestão, continua desequilibrada, não no acesso ou nos números gerais, mas na distribuição desses números por sexo, constatando-se segregação horizontal e vertical de sexo e gênero. Segregação horizontal significa concentração de mulheres em algumas áreas do conhecimento e cursos de menor prestígio. Segregação vertical (também chamada de teto de vidro) significa que elas permanecem nos postos mais baixos da carreira acadêmica, mesmo nas áreas de conhecimento em que elas são maioria.
Consequentemente, no século XXI, no Brasil e em todo o mundo, as mulheres ainda constituem presença minoritária no campo da produção do conhecimento científico, apesar do crescimento dos números de graduadas e doutoradas. O teto de vidro decorre da cultura masculina predominante na academia, ou seja, do clima frio, sobretudo nos campos do conhecimento masculinos.
É importante destacar que a luta das mulheres pelo direito à educação precedeu a luta pelo direito ao voto. Foi só quando tivemos um maior número de mulheres educadas que as lutas feministas cresceram e se diversificaram: por igualdade salarial, contra a violência de gênero, por direitos sexuais e reprodutivos, pelo reconhecimento das diferenças de sexo e gênero, das contribuições culturais das mulheres, das competências e valores femininos. O acesso à educação superior e à pós-graduação também possibilitou que as mulheres se tornassem pesquisadoras e passassem a estudar os problemas que as afetam especificamente.
Surgimento dos estudos feministas e do conceito de gênero
A partir da década de 1960, a chamada segunda onda do movimento feminista gerou os estudos da mulher, estudos feministas ou estudos de gênero, geralmente situados em instituições de educação superior. Empreendidos por docentes e pesquisadoras feministas, esses estudos vieram a constituir um campo em contínua expansão e interação com a sociedade, impactando instituições políticas e econômicas, públicas e privadas, nacionais e internacionais. Além de contribuírem para o avanço das políticas de igualdade, denunciaram o androcentrismo (naturalização da experiência masculina como comum a todo ser humano) das instituições e práticas científicas e geraram uma teorização própria acerca das relações de gênero e da situação política, econômica e social das mulheres.
Gênero é um conceito científico, central na teorização feminista. Refere-se às distinções de feminilidade e masculinidade, que são convertidas em desigualdades e marcam as identidades, os espaços, atividades e objetos sociais: jeito masculino e jeito feminino, lugar de homem e lugar de mulher, coisa de menino e coisa de menina. As relações de gênero são relações de poder, construídas a partir das diferenças sexuais. Implicam oposição: forte, corajoso, capaz X fraca, medrosa, incapaz. Implicam dicotomia: não se pode ser masculino/a e feminino/a. Por se reduzirem a dois, excluem a diversidade: as múltiplas formas de masculinidade e feminilidade.
De fato, existem diferenças entre indivíduos do mesmo sexo (físicas, psicológicas, culturais, de classe, raça/etnia, geração, orientação sexual etc.) e não faz sentido inscrever diferenças entre homens e mulheres, como se fossem grupos homogêneos. Apesar das mulheres serem dotadas da capacidade de gerar e reproduzir a espécie, todos os seres humanos são capazes de cuidar das crianças, da casa e do planeta, assim como de criar arte, ciência e tecnologia. Portanto, as diferenças e desigualdades de gênero não são naturais, mas ensinadas e aprendidas, de forma que geralmente a grande maioria das mulheres e às vezes alguns homens (em situação subalterna, afeminados) são inferiorizadas/os, exploradas/os, oprimidas/os, excluídas/os. Todavia, todos os homens e mulheres são prejudicados em seu desenvolvimento humano quando são criados/educados para serem opostos e desiguais.
Inicialmente, os estudos de gênero trataram não apenas de incluir as mulheres, em sua diversidade, como objetos e sujeitos de conhecimento (pesquisadas e pesquisadoras), mas de incluir a perspectiva de gênero na própria produção do conhecimento. O gênero constitui um caso especial entre todas as discriminações sociais, pois não se refere a um grupo específico ou minoria social, mas atravessa todos os grupos e povos, nos quais as mulheres constituem sempre a metade. A inclusão da perspectiva de gênero na pesquisa em todas as áreas do conhecimento pode apontar novas questões e propiciar novas interpretações. Ademais, a inclusão da perspectiva de gênero na educação superior visa promover uma mudança ética nas instituições para que estas incorporem a equidade e a diversidade.
Os estudos de gênero não se restringem às questões das mulheres. Tratam das relações simbólicas entre construções de masculinidade e feminilidade, e de relações concretas entre homens e mulheres, entre mulheres e entre homens, sob esse prisma simbólico. Posteriormente, desenvolvem-se os estudos sobre homens e masculinidades, bem como incluem-se pesquisadores do sexo masculino no campo de estudos feministas.
Desenvolvimento dos estudos de gênero no Brasil e surgimento da Redor
No Brasil, os estudos sobre a mulher cresceram durante a Década da Mulher (1975-1985), ainda sob a ditadura militar, com o surgimento de grupos feministas e publicações, sobretudo na região Sudeste. Na década de 1980 surgiram os primeiros núcleos de estudo e grupos temáticos (GT) sobre as questões da mulher e de gênero nas associações das ciências sociais e humanas. Todavia, os estudos feministas concentravam-se na região Sudeste. No Norte e no Nordeste só foram impulsionados a partir da criação da Rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher e Relações de Gênero (REDOR).
A Redor nasceu em 1992, por iniciativa do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM), da Universidade Federal da Bahia, visando estimular o desenvolvimento e a divulgação desses estudos nessas regiões do país. Naquele ano, em 12 de setembro, em Salvador, o NEIM realizou o I Encontro Regional de Estudos sobre a Mulher e Relações de Gênero do Norte/Nordeste, com financiamento da Fundação Ford, com a intenção de articular as pesquisadoras das duas regiões, que não se conheciam e estavam isoladas entre si. A ata de fundação da Redor foi assinada por 33 participantes de 12 núcleos, grupos e articulações pró-núcleo de oito estados: Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Pará. Desde então, a Redor impulsionou a criação de novos núcleos e grupos e atualmente reúne cerca de trinta.
Uma das ações de maior impacto da Redor tem sido a promoção de encontros anuais, atualmente bianuais, de socialização de estudos e pesquisas.
Esses encontros não se restringem mais ao Norte e Nordeste do Brasil, e têm contado com a crescente participação de docentes e discentes da educação superior (da graduação e da pós-graduação), professoras e professores das escolas de educação básica e membros de organizações não governamentais. Os últimos encontros ocorreram na Universidade Federal da Paraíba, em 2012, organizado pelo Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Ação sobre a Mulher e Relações de Sexo e Gênero (NIPAM); e na Universidade Federal Rural de Pernambuco, em 2014, organizado pelo Núcleo de Pesquisa-Ação Mulher e Ciência (NPAMC). Em 2016 o Núcleo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares sobre Mulher e Relações de Gênero (NEPIMG), da Universidade Federal de Sergipe, realizou o XIX Encontro Internacional da Rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos e Pesquisas sobre Mulher e Relações de Gênero.
Reconhecimento da importância dos estudos de gênero
Em 1998, a UNESCO gerou a Declaração Mundial sobre Educação Superior no Século XXI: Visão e Ação. Adotada por muitas instituições de educação superior em todo o mundo, essa declaração assinala como objetivo prioritário a promoção do acesso e o fortalecimento da participação das mulheres através de cinco eixos de ação: a sensibilização, o desenho curricular, a pesquisa e extensão, a cultura institucional e a coordenação interinstitucional.
Em 2005, a recém criada Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM/PR) em parceria com o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o Ministério da Educação (MEC) e a ONU Mulheres (UNIFEM), lançou o Programa Mulher e Ciência com três estratégias de intervenção: o financiamento de projetos de pesquisa na área de gênero, mulheres e feminismos, via edital específico do CNPq; a instituição do Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero, um concurso de redações ou artigos científicos sobre as questões de gênero, para estudantes de ensino médio, graduação e pós-graduação; e a realização de Encontro Nacional de Núcleos e Grupos de Pesquisa “Pensando Gênero e Ciências”.
O tema do segundo e último encontro, realizado em 2009, foi a institucionalização dos estudos feministas, de gênero e mulheres nos sistemas de educação, ciência e tecnologia no país, em consonância com o II Plano Nacional de Políticas para Mulheres (PNPM 2008), que propõe o apoio institucional a esses grupos e núcleos. O atual PNPM 2013/2015 também destaca, entre suas ações, apoiar a constituição e o fortalecimento de núcleos de gênero especialmente nas universidades públicas. Atualmente, reconhece-se amplamente que a criação de novos objetos de conhecimento, a partir dos estudos de gênero inter/multi/transdisciplinares, potencializa o desenvolvimento e a inovação científica e cultural.
Nesse sentido, a ação dos grupos e núcleos de estudos de gênero das instituições de educação superior é importante e estratégica. Seu impacto é tanto formal quanto informal, institucional e social. Por um lado, desconstroem o conhecimento acadêmico tradicional, salientam a relevância social da perspectiva gênero e buscam incluí-la em todos os âmbitos da vida acadêmica, além de pesquisarem sobre as desigualdades de gênero nas relações institucionais e sociais cotidianas. Por outro lado, realizam intervenções sociais e institucionais comprometidas com a equidade e promovem o empoderamento das mulheres tanto no contexto das instituições de educação superior quanto fora dele, através de suas ações de formação e extensão.
O presente e o futuro da Redor
Os núcleos e grupos integrantes da Redor foram fundados entre 1983 e 2009, com significativa concentração entre 1991 e 1998, bem como na região Nordeste. Os pioneiros são o NEIM/UFBA e o Família, Gênero e Sexualidade – FAGES/UFPE, ambos no Nordeste.
O primeiro fundado na região Norte foi o Grupo de Estudos e Pesquisas “Eneida de Morais” sobre a Mulher e Relações de Gênero – GEPEM/UFPA, de 1994. Em 1998 foi fundado o Núcleo de Pesquisas em Gênero e Masculinidades – GEMA/UFPE, o único de homens feministas. Supomos a existência de grupos e núcleos fundados após 2009, porém não estão ainda filiados à Redor.
Quase todos os núcleos e grupos integrantes da Redor estão vinculados às áreas de ciências sociais e humanas, onde se inserem suas/seus fundadoras/es. As exceções são os que se inserem na enfermagem e saúde coletiva e enfocam a saúde da mulher. Todos desenvolvem diversos projetos de pesquisa, extensão e formação em articulação com as políticas públicas e movimentos sociais.
Nem todos têm boas instalações, funcionários, página web, telefone, registros de sua história e produção. São produto da militância de suas fundadoras e participantes e muitos padecem de fraca institucionalização, isto é, sua sustentação continua dependendo do ativismo. Quando se tem de fazer um esforço enorme para criar e sustentar as atividades de um grupo ou núcleo sem apoio institucional, não sobra tempo para registrar o processo, produtos e avanços. Ademais, as acadêmicas feministas ainda sofrem preconceito e discriminação (ou seja, não encontram facilidades ou reconhecimento) na academia por pesquisarem gênero, um conceito cuja importância ainda não foi devidamente assimilada.
Destaca-se a trajetória do NEIM/UFBA que, além de criar a Redor, sediou a rede durante algum tempo e organizou encontros em 1992, 2001 e 2005. Hoje tem prédio próprio, cursos de graduação, mestrado e doutorado, o Programa de Pós-graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulher Gênero e Feminismo, pioneiro no Brasil e na América Latina. É o núcleo que mais se expandiu e alcançou maior institucionalização.
O que vem sustentando os grupos e a rede é a realização dos eventos científicos (os Encontros da Redor), já que os projetos de pesquisa em rede, desenvolvidos no início, não aconteceram mais. Esses encontros periódicos, além de promoverem o intercâmbio de estudos entre pesquisadoras/es e estudantes e contribuírem para o avanço e legitimação dos estudos feministas e de gênero nas instituições de educação superior e além delas, dão visibilidade interna (em cada instituição) e local (na cidade e estado) aos núcleos/grupos e aportam também recursos financeiros.
Tanto os núcleos/grupos quanto a Redor têm o desafio da sustentação, imprescindível para manter e fortalecer os estudos feministas e de gênero e contribuir para a luta contra a discriminação e desigualdade de gênero. As acadêmicas feministas ainda são poucas e sobrecarregadas de trabalho, dentro e fora dos núcleos, para implementarem várias tarefas importantes como:
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a formação e inclusão de novas gerações de acadêmicas feministas, com vista à renovação/sucessão geracional dos núcleos/grupos;
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a articulação e colaboração com as lutas dos movimentos e grupos feministas, fortalecendo a relação entre o feminismo acadêmico e os movimentos sociais;
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a institucionalização, consolidação e expansão dos núcleos e grupos dentro das IES (diante de obstáculos de ordem ideológica e da exaustão das docentes/militantes no contexto da intensificação do trabalho docente), buscando apoio e reconhecimento institucional;
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a elaboração de projetos de formação, extensão e pesquisa, buscando articular projetos em rede, e concorrência a financiamento junto aos órgãos de fomento;
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investimento, por parte de cada núcleo/grupo, na sustentação da Redor, buscando formas criativas de manter a rede além dos encontros.
Uma rede se faz articulando-se consensos na diversidade e além das diferenças e conflitos. A irmandade ou sororidade feminista não se faz sem discussão aberta e manejo de disputas. As relações de poder entre mulheres (por exemplo, entre feministas acadêmicas mais antigas e recém-chegadas, mais militantes ou mais acadêmicas, de diferentes disciplinas acadêmicas) são fruto da dominação masculina e das hierarquias já estabelecidas, e necessitam ser explicitadas e criticadas onde e se ocorrem. Além de momentos e espaços em que as mulheres necessitam se fortalecer entre elas, também é importante incluir os homens, pois o feminismo é para todos.
O que o feminismo pretende é praticar outras formas de relação de poder, horizontais, colaborativas, empoderadoras para todas e todos. Sem o empoderamento e a união de todas/os não se poderão mudar outras relações de poder dentro e fora da academia, nem o androcentrismo do conhecimento, nem se avançar na construção da justiça de gênero.
A AUTORA
Maria Eulina Pessoa de Carvalho é doutora em Educação e professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba. Também atua como pesquisadora do NIPAM/UFPB. Este texto é fruto do projeto de pesquisa “Trajetórias e contribuições dos Núcleos de Estudos da Mulher e Relações de Gênero integrantes da Rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos e Pesquisa sobre Mulher e Relações de Gênero – REDOR: do pessoal ao institucional”, financiado pelo CNPq; e do projeto “Gênero e Educação Superior: Políticas, Narrativas e Currículo”, financiado pela CAPES.