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Sociedade

Arte e

Editores Temáticos: Moacir dos Anjos e Paulo Marcondes 

nº 16 | 26 de maio de 2025

Pantasmas de Vladimir Carvalho

Aécio Amaral

Vosmecês são uma nação de gente fina, não sei pra quê estão levando a minha pantasma presa aí nessas latas...

(Manoel, protagonista de O país de São Saruê)

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Pôster de O país de São Saruê (1971), Vladimir Carvalho

Em outubro passado, o meio cinematográfico brasileiro foi tomado de surpresa pela notícia repentina da morte do cineasta cinemanovista Vladimir Carvalho. Apesar de sua idade, 89 anos, a notícia causou surpresa em vista da vitalidade do diretor do consagrado O país de São Saruê - tido pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema como um dos doze melhores documentários do cinema brasileiro - e de outras obras seminais. Com residência fixa em Brasília e visitas esporádicas (cada vez mais raras) ao Rio de Janeiro, onde tinha um apartamento no bairro do Flamengo, Vladimir Carvalho estava muito envolvido com as condições de preservação do acervo do Museu do Cinema, que ele manteve por anos em sua própria casa.

Condecorado pelo Ministério da Cultura no dia 1 de maio de 2024 por sua colaboração para o entendimento do mundo do trabalho na segunda metade do século XX no Brasil, particularmente da realidade dos candangos na construção de Brasília (Conterrâneos velhos de guerra, de 1991, e Brasília segundo Feldman, de 1979), Vladimir Carvalho voltava aos holofotes nacionais. O anúncio da verba para a preservação do acervo do Museu do Cinema completou as honrarias ao cineasta paraibano radicado em Brasília. 

Embora a condecoração realçasse a produção voltada à construção da cidade, marco da modernização e do modernismo brasileiros, a produção anterior de Vladimir Carvalho, toda ela filmada no Nordeste, é também devotada à relação entre trabalho e modernização. A partir de uma tensão constitutiva entre o imaginário dos sertões legado por Euclides da Cunha ([1902]2024) e uma visão materialista histórica, Vladimir aborda então a relação entre o humano, a terra e a propriedade, em uma produção seminal que vai de sua colaboração como corroterista de Aruanda, de 1960, a um par de curtas-metragens que prenunciam O país de São Saruê, filmado entre 1966 e 1970.

Em julho, eu conversei por telefone com Vladimir pela terceira vez naquele ano, por conta de um projeto cinematográfico que dirijo com Ed Junior (cineasta paraibano). Ele estava empolgado com o início dos trabalhos de preservação do acervo. Como nas conversas anteriores, a memória dele estava afiadíssima e veloz quando o assunto era a efervescência cultural e política no Brasil e em João Pessoa, entre meados dos anos 1950 e meados dos anos 1960. Trata-se, como se sabe, de um período essencial da história política do país, que antecede o rumo autoritário e conservador que a modernização brasileira adquiriu com a instauração da ditadura civil-militar em 1964. 

Vladimir foi uma figura central na articulação entre arte e política naquele período, com atuação marcante em João Pessoa, Recife, Salvador e Rio de Janeiro. Sua participação em nosso projeto se dá pela alusão frequente que membros de sua geração fazem à importância de sua presença nos eventos da época em João Pessoa, onde atuou entre 1954 e 1962. Vladimir foi camarada de figuras como o artista plástico Breno Mattos e a atriz Zezita Mattos, da artista plástica Marlene Almeida, do dramaturgo Paulo Pontes e outros. Este grupo de jovens artistas e intelectuais orbitava em torno da arte de vanguarda produzida à época em João Pessoa e sua relação com a juventude comunista do PCB, atividades de agit prop e o movimento das Ligas Camponesas. O lema dessa geração, concebido por Breno Mattos (que em sua adolescência recifense frequentou o Ateliê Coletivo, liderado por Abelardo da Hora), era: “Não faremos arte dirigida, mas dirigiremos a arte para o povo” (cf. Carvalho, 2015). Trata-se de um período pouco abordado em nosso cinema, sobretudo se pensarmos que aí estava sendo urdido um núcleo autoral primordial do Cinema Novo (Linduarte Noronha, João Ramiro e o próprio Vladimir) e que João Pessoa, o brejo e o sertão paraibanos eram cenários de produções importantes dessa corrente vanguardista dos cinemas brasileiro e latino-americano.

O plano inicial era entrevistarmos Vladimir em sua casa/museu em Brasília, na terceira semana de julho. Infelizmente, questões orçamentárias típicas de produções de baixo orçamento nos fizeram postergar a entrevista para novembro. Quis o destino que um mês antes Vladimir morresse. Evoco essa comunicação abruptamente interrompida porque, desde sua morte, Vladimir Carvalho se tornou uma personagem espectral em nosso projeto, alguém cuja ‘presença’ não se dará mais a ver e cujo acesso depende da sua inscrição em artefatos técnicos (nossas conversas telefônicas, seus filmes, arquivos). As pessoas mais próximas me perguntam como inseriremos agora o testemunho de Vladimir sobre aquele período, se o que temos, além dos relatos dos camaradas de sua geração e alguns parcos arquivos, é a minha memória das nossas conversas telefônicas. Como verter narrativamente conversas telefônicas não gravadas em testemunho documentário? 

Enquanto lidamos com esse problema em nosso projeto, a única certeza é que Vladimir figurará nele como uma presença espectral, uma disjunção temporal em sentido derridiano. Evoco esta constatação estética e lutuosa porque, a partir dessa experiência inusitada, me pus a pensar no tema da espectralidade no cinema de Vladimir, sobretudo nas obras de sua primeira safra, aquelas produzidas no litoral paraibano (Os romeiros da Guia, de 1962, dirigido com João Ramiro) e no Sertão do Rio do Peixe. É significativo que ele tenha denominado posteriormente, inspirado na frase do personagem Manoel que serve de epígrafe a este ensaio, as obras produzidas no e sobre o Sertão, sua “fase nordestina”, de pantasmas (cf. Mattos, 2023).

Em geral, a contribuição de Vladimir Carvalho ao entendimento do processo desigual e combinado da modernização brasileira é pensado a partir de seus filmes sobre a epopeia da construção de Brasília e a opressão que então recaiu sobre os operários, a maioria nordestinos. Ocorre que, como o próprio Vladimir dizia, no cerrado planaltino ele reencontrou o Sertão, seu microcosmo fundamental. Trata-se, evidentemente, de um reencontro virtual. 

Foi no semiárido paraibano, com o roteiro de Aruanda, escrito com Linduarte Noronha e João Ramiro, que Vladimir direcionou sua atenção de cineasta para esse microcosmo, embora, desde a sua infância em Itabaiana, a visada sobre a relação entre sertão e modernização marcasse a sua percepção do mundo. Obras fundamentais como A bolandeira (1969) - que influenciou Walter Salles em Abril despedaçado (2002) -, Incelença para um trem de ferro (1972),  A pedra da riqueza (1975) e o magistral O país de São Saruê (1971) completariam essa perspectiva do Sertão como um espectro euclidiano a rondar a modernização brasileira. Essas são também obras sobre ofícios que desaparecem sob a modernização, sobre a relação entre o humano e a natureza que eles encerram, e que se tornam acessíveis espectralmente, através de sua inscrição cinematográfica.

A seguir, elenco brevemente os motivos teóricos, estéticos e artísticos que alicerçam a mirada de Vladimir Carvalho sobre a relação entre sertão e modernização, e tomo sua obra dos anos de 1960-1970, que ele próprio denominou de pantasmas, como um testemunho artístico e estético do imaginário euclidiano do sertão como o grande “Outro” da modernização brasileira. A relação íntima e profícua dessa mirada com a linguagem neobarroca cinemanovista terá que aguardar por uma ocasião e um espaço mais propício. Mas, espero demonstrar que a relação entre testemunho e espectralidade é, na obra em discussão, um aspecto importante.

Duas vertentes de pensamento são definidoras da mirada de Vladimir Carvalho sobre o Sertão e a relação sempre tensa deste com a modernização: o imaginário que deriva de Os sertões, de Euclides da Cunha, e uma antropologia marxiana cuja categoria principal é ‘trabalho’. Em seu livro de entrevistas ao crítico de cinema Carlos Alberto Mattos (2023), Vladimir aponta essa dupla influência como delimitadora do horizonte estético que ele desenvolverá a partir de condições técnicas e artísticas bastante precárias. 

Não é preciso muito esforço para notar que a primeira parte de Aruanda é feita de fotogramas de inspiração euclidiana, ao enquadrar a diáspora negra no sertão paraibano a partir da mise-en-scène da fundação de um quilombo na aridez da Serra do Talhado, no sertão paraibano. Se considerarmos a importância de Aruanda para a estética do Cinema Novo, temos uma boa pista do peso da crítica euclidiana para essa vertente cinematográfica – peso este que perdurará pelo menos até a sequência final de O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), de Glauber Rocha, em que o anti-herói e justiceiro barroco Antônio das Mortes caminha solitário por uma estrada do sertão ao litoral, ultrapassado por caminhões de carga e ladeado por um posto de combustíveis Shell. Nessa linha de pensamento, o sertão é o grande “Outro” da modernização brasileira.

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Fotograma de Aruanda, Linduarte Noronha, 1960. Fonte: Aruanda Play

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Fotograma de O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, Glauber Rocha, 1969

Porém, Vladimir não adere acriticamente ao imaginário euclidiano, pois o faz dialogar com uma antropologia marxiana. Desde meados dos anos 1950, e mesmo durante a infância em Itabaiana - filho de um carpinteiro com inclinações comunistas -, o marxismo rondava a cabeça do jovem Vladimir. Mais tarde, sua atuação como jornalista junto ao movimento das Ligas Camponesas em cidades como Sapé e Mari, que ele exerceu como enviado do jornal Novos Rumos, publicação do Partido Comunista Brasileiro sediado no Rio de Janeiro, concluiu o elo entre a inspiração político-teórica, o amor ao Sertão como microssomo afetivo e comunidade imaginada, e a mirada cinematográfica. 

Sabe-se que a experiência com a cobertura jornalística das Ligas Camponesas foi decisiva para que Eduardo Coutinho – que foi apresentado a Elizabeth Teixeira por Vladimir no calor dos eventos ao redor do assassinato do líder camponês João Pedro Teixeira – convidasse o jovem paraibano para ser seu assistente de direção em Cabra marcado para morrer, cujas filmagens iniciaram-se em 1964 e foram abruptamente interrompidas por soldados do Exército na significativa noite de 31 de março daquele ano. Segundo Vladimir me contou ao telefone em uma de nossas conversas, o convite foi feito em Salvador, para onde ele se mudara recentemente para cursar Filosofia e se aproximara do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC/UNE), e de Glauber Rocha. Coutinho teria chegado a argumentar que só Vladimir poderia ser o assistente de direção do filme, dada a proximidade dele com Elizabeth Teixeira e o entendimento que ele tinha das divisões internas do movimento comunista na Paraíba e em Pernambuco, cindido entre as vertentes de Luís Carlos Prestes (que encampara a aliança do Partido Comunista Brasileiro com a burguesia, a defesa do nacionalismo, da democracia e da organização político-institucional), de Francisco Julião (adepto das guerrilhas no campo, comandadas por Che Guevara desde a Revolução Cubana) e da Ação Católica. O set de filmagem de Cabra marcado para morrer foi cenário de  tensões entre todas essas vertentes, assim como da relativa esquivança de Elizabeth Teixeira e outros camponeses-personagens (aliados de Julião) perante Eduardo Coutinho (vinculado ao CPC da UNE) e sua equipe sudestina.

O que é menos sabido é que a experiência com a cobertura jornalística das Ligas Camponesas no contexto da campanha pelas Reformas de Base do governo João Goulart reverberaria em linguagem cinematográfica. Esta linguagem foi desenvolvida nos filmes curtos A bolandeira e A pedra da riqueza, em um processo de imersão sertão adentro, conduzido por Vladimir em em companhia do seu irmão caçula Walter Carvalho, de João Ramiro e do fotógrafo Manoel Clemente, e culminaria com a montagem do material mais robusto em O país de São Saruê. Vladimir orgulhava-se de dizer que sua expedição pelo sertão foi anterior à famosa Caravana Farkas, que influenciou fortemente os cinemanovistas.

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Vladimir Carvalho e Manoel Clemente em foto no set de O País de São Saruê

É aí que se vê com mais força o cotejo entre a crítica euclidiana, assentada na tríade homem/terra/propriedade, e uma antropologia marxiana: a abordagem crítica da realidade opressiva e de exploração à qual camponeses, trabalhadores da cultura do algodão e da mineração são submetidos; a decadência do legado do catolicismo lusitano e do liberalismo antilusitano da Confederação do Equador; o papel do solo do semiárido paraibano e potiguar na dinâmica da modernização autoritária e conservadora capitaneada pelo regime ditatorial civil-militar e da corrida espacial da guerra-fria. Ou seja, não restam dúvidas: o imaginário do Sertão como o Outro da modernização é muito mais uma sobredeterminação do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo dependente das economias latino-americanas, que um fato ou destino que possa ser atestado pela pena positivista de Euclides da Cunha.

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Fazenda Acauã, na Paraíba, marco tanto da imposição da cultura católica lusitana, como do liberalismo inspirado na Confederação do Equador – fotograma de O País de São Saruê

Ao rever essas obras, fica claro o quanto os espectros marxiano e euclidiano rondam a obra de Vladimir Carvalho em uma tensão constitutiva. Penso que a contribuição de Vladimir Carvalho à linguagem neobarroca cinemanovista se origina dessa tensão. O caráter lutuoso da narrativa, presente no recurso à voice over grave de Ecchio Reis, que atesta o declínio da civilização ‘católico-lusitana-liberal’, e nos poemas de Jomar Moraes Souto ditos por Paulo Pontes, não vem do abandono de Deus e da natureza pelo sertanejo, mas sim do abandono que a modernização impôs ao sertanejo após a derrota da campanha pelas Reformas de Base, jogando-o à própria sorte. Os momentos finais de O país de São Saruê são inclusive uma forte denúncia da “indústria da seca”, a qual ecoa o espectro euclidiano que tanto beneficiou a aliança entre o coronelismo e o assistencialismo dos governos civil-militares.  

A narração através das lentes estouradas e da câmera na mão inquieta, a um só tempo emuladora e participante de Manoel Clemente, que à certa altura se vale da companhia do então estreante Walter Carvalho, dá o tom barroco da obra diante da inclemência da exploração dos camponeses e antigos mineradores. Tom este que beira o delírio, como na sequência que acompanha o personagem da família Suassuna em sua busca presumidamente lunática pela riqueza através da escavação do subsolo de sua propriedade em Catolé do Rocha. Há aí um misto de sofisticação estética que o Cinema Novo foi capaz de propiciar ao mundo e de testemunho consciente e materialista da impossibilidade de realização da utopia de São Saruê em plagas sertanejas sob jugo autoritário. Não se trata, portanto, de reanimar o espectro dos eternos retirantes de Canudos comentados por Euclides da Cunha, tão produtivo ao imaginário nacional autoritário e conservador. Ao invés, tem-se o espectro das promessas emancipatórias da modernidade e da diáspora negra pós-escravatura. Nesses filmes de Vladimir, e Incelência para um trem de ferro parece aqui um exemplo notório, tudo é ruína quando ainda é construção, para parafrasearmos Caetano Veloso, seu amigo desde o curso de Filosofia em Salvador. 

De volta ao argumento inicial, enquanto refletimos sobre o recurso narrativo através do qual possamos fazer justiça à presença de Vladimir Carvalho em nosso projeto, pensar sobre a espectralidade e o testemunho cinematográfico em sua obra me parece um exercício profícuo para o entendimento do fantasmático no Cinema Novo. Estamos aí no cerne do problema da justiça, tão caro aos cinemanovistas e sua linguagem neobarroca. Seria necessário, para tanto, inserir o Cinema Novo em uma genealogia do fantasmático no cinema, movimento aberto na cinefilia por Luiz Soares Jr. (2018) para pensar o legado do cinema clássico. Decerto, o Cinema Novo guarda essa linha de continuidade com a linhagem clássica, a despeito do arrivismo vanguardista de Glauber Rocha - que, afinal, não quitou de todo sua dívida em relação ao próprio imaginário euclidiano (cf. Santiago, 2017). 

Em O país de São Saruê - para ficarmos no momento mais vigoroso da poética de Vladimir Carvalho -, o contraste do claro-escuro e a luz estourada da narração, junto com uma lentificação e movimentos de câmera alucinados e a voice over lutuosa e de dicção aturdida, dão tons incontornáveis do apelo barroco por uma justiça sequestrada, fruto da exploração das relações de trabalho e da alienação do sertanejo em relação à terra e seus frutos. Justiça esta que a juventude interrompida de sua geração não viu ser realizada. Reabrir essa veia na arte brasileira atual é considerar os efeitos ideológicos que o slogan evolucionista, afinal, de “país em desenvolvimento ou emergente” contém, como bem alerta uma curadoria recente de Moacir dos Anjos (2024). A estética neobarroca de Vladimir Carvalho crava as ruínas da modernidade colonizadora e da modernização autoritária e conservadora no seio do ufanismo da era Geisel. 

Acessar essa reabertura hoje requer uma percepção calejada diante dos roteiros ready-made e das montagens aceleradas típicas do cinema mainstream atual. Porém, a familiarização com as influências assumidas do neorrealismo italiano, do documentário performático de Flaherty e da estrutura de inspiração soviética do roteiro e da montagem exige um senhor exercício de reeducação do olhar e da percepção. 

Paralelamente, essa reabertura da percepção também requer a consideração da natureza fantasmática que é própria do cinema como arte por excelência da modernidade industrial. O espanto contido na frase do personagem Manoel de O país de São Saruê aqui é bastante elucidativo. O registro da imagem humana por meio de uma tecnologia de percepção contém uma dimensão espectral clara. O espanto de Manoel é compreensível e mesmo filosófico, diz da consciência e do estranhamento de que sua imagem em movimento sobreviverá a ele, que ele se tornará uma disjunção temporal, um espectro. Trata-se de uma captura do humano e da natureza mais profunda que a fotografia, que ele certamente já conhecia.

Para Walter Benjamin (2015), o cinema é o artifício pelo qual o humano exercita sua percepção em meio ao incremento dos meios de produção da vida material. Como se sabe desde Hegel e Marx, esse exercício define o humano em sua relação dialética com a equipamentalidade técnica, em um movimento emancipatório constantemente ameaçado pela inflexão em dominação. No caso em questão, a produção cinematográfica se insere em um processo moderno de “industrialização da memória”, para usarmos o termo cunhado por Bernard Stiegler (2009). Ao mesmo tempo em que a industrialização da memória é, em uma via benjaminiana, condição da experiência prostética moderna, ela também causa potencialmente desorientação ao redefinir, como demonstra Stiegler, nossa experiência da finitude e a faculdade de retenção da memória.

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Fotograma de Manoel, personagem principal de O País de São Saruê

Ciente dessa dialética, Vladimir Carvalho postulava, inspirado no espanto do personagem de seu filme, que “a arte não é a realidade, mas apenas o signo dela, pantasma” (apud Mattos, 2023). Há aqui um salto de entendimento, pois a apreensão da imagem do humano e da natureza por objetos técnicos de percepção não implica apenas em colocá-los em uma condição de armazenamento ilimitado para uso posterior indefinido, como na fenomenologia heideggeriana. A condição de transmissão da experiência, e de acesso mesmo à realidade, depende agora daquilo que Derrida define como a continuidade do vivo pelo não-vivo, o orgânico e o natural em relação coconstitutiva com o artificial. Tal relação, que resulta da inscrição artefatual da experiência em suportes técnicos, é em si espectral, como demonstrado na triangulação que Jacques Derrida (1994) opera entre Marx e Shakespeare via Hamlet.

Cabe então refletir sobre a ideia benjaminiana (1987) da tecnologia como uma segunda physis na modernidade em um movimento complementar à retomada, por Derrida, de uma espectrologia barroca para pensar a importância do legado materialista de Marx. Que este seja um caminho cujos motivos convergem para a produção de Vladimir Carvalho aqui discutida, é algo que parece nos abrir a uma possibilidade de leitura de sua obra, inserindo o fantasmático em sua cinematografia.

REFERÊNCIAS 

Arte subdesenvolvida. Organização Bruna Neiva; curadoria Moacir dos Anjos. Brasília, DF: Tuîa Arte Produção, 2024. (Catálogo)

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Organização e apresentação Márcio Seligmann-Silva; trad. bras. Gabriel Valladão Silva. Porto Alegre: L&PM Editores, 2015.

BENJAMIN, Walter. A caminho do planetário. In: Rua de mão única. Trad. bras. Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1987. (Obras Escolhidas; vol. 2)

CARVALHO, Vladimir. Onde estiverem. Correio das Artes, Ano LXV, n. 11, janeiro de 2015

CUNHA, Euclides da. Os sertões. Edição Crítica, 2ª ed. São Paulo: Ubu Editora, 2024.

DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova internacional. Trad. bras. Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

MATTOS, Carlos Alberto. Vladimir Carvalho: Pedras na lua e pelejas no Planalto. 2ª ed. São Paulo: Paraquedas, 2023.

SANTIAGO, Silviano. Genealogia da ferocidade. Recife: CEPE Editora, 2017. 

SOARES JR., Luiz. De forças e de fantasmas: O demoníaco no cinema clássico. São Paulo: Editora Cajuína, 2018. 

STIEGLER, Bernard. Technics and Time, 2 - Disorientation. Stanford, California: Stanford University Press, 2009.

O AUTOR

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Aécio Amaral é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba, onde leciona Sociologia da Arte e tópicos de teoria sociológica. Foi Visiting Tutor no Departamento de Sociologia de Goldsmiths, Universidade de Londres, Inglaterra (2008-2010) e Professor Substituto no Departamento de Sociologia da Universidade Federal Rural de Pernambuco (2000-2002). Seus interesses de pesquisa são: arte e política no Brasil; estética e política; memória coletiva e escrita cinematográfica; artes e antropoceno. É cineasta independente e diretor, com Ed Junior, do longa-metragem documentário “Camarada Zezita, Severina me salvou” (Imbuia Filmes, em pós-produção). 

COMO CITAR ESSE TEXTO

AMARAL, Aécio. Pantasmas de Vladimir Carvalho (Artigo). In: Revista Coletiva - Arte e Sociedade. nº 16. Publicado em 26 de Maio de 2025. Disponível em: <coletiva.org/arte-e-sociedade-n16>. ISSN 2179-1287.

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