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Corpo e cinema: a experiência do espectador e as imagens poéticas

21 de dezembro de 2019 | Ana Cristina Zimmermann, Soraia Chung Saura

Introdução 

 

O cinema traz a novidade do movimento para as telas, no mesmo período em que o esporte moderno ascende como um fenômeno mundial. Cinema e esporte compartilham o interesse pelo movimento. De uma maneira diferente, eles promovem uma poderosa experiência de imersão e envolvimento corporais – por meio da percepção, dos afetos e emoções. O cinema surge, de fato, como estudo do movimento humano e causa surpresa em suas primeiras apresentações.

 

As experiências de Marey, Muybridge e dos Irmãos Lumière trazem novas possibilidades de investigar este movimento em detalhes, criando diferentes direções para a ciência e a arte. Mas, na verdade, os filmes abrem uma ampla gama de oportunidades para explorar também a percepção humana. Da relação entre cinema e esporte resulta um diálogo instigante com uma variedade de temas como justiça, gênero, doping, habilidades, significado da vitória, exposição ao risco, valores esportivos, dor, violência, competição, igualdade, traição, engano, jogo limpo, regras, superação... o drama da vida, impregnado no esporte.

 

Entre todas as grandes discussões possíveis, gostaríamos de explorar o envolvimento corporal do espectador/a ao assistir a filmes, com base na experiência do Projeto Cinema e Corpo. Desde 2011, este projeto recebe filmes, diretores, professores e alunos para uma sessão de cinema, seguida de debate sobre questões relacionadas ao corpo e ao cinema para reflexões interdisciplinares. Portanto, o objetivo deste ensaio é explorar a experiência corporal de espectadores nas exibições de filmes, bem como o papel das imagens poéticas.

 

O foco primeiro é o silêncio, a disponibilidade e o olhar interrogativo, considerando como referência a fenomenologia do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty. Em segundo lugar, pretendemos explorar a noção de imagens poéticas com base na fenomenologia da imagem do filósofo e poeta francês Gaston Bachelard e seu papel na construção de nosso imaginário esportivo. Entre as numerosas narrativas de encantamento que o cinema provoca estão aquelas que habitam o imaginário do esporte: Carruagens de Fogo, a controversa Olympia, filmes de Bruce Lee, Raging Bull, Million Dollar Baby, Invictus,  Garrincha: Alegria do Povo, e muitos outros.

 

O prazer, a dor, a lágrima, a surpresa, o suspense ... somos seduzidos por imagens e sons. Envolvidos em todos os aspectos. O filme fala por si. O espectador precisa estar presente e assistir do início ao fim, com abertura e disponibilidade. Somos sensibilizados por uma possibilidade - história, atuação, fotografia, trilha sonora - tantos elementos em uma experiência única. O cinema mobiliza nosso corpo, provoca nossos sentidos, evoca nossa imaginação e suscita reflexões.

Silêncio e disponibilidade

 

As luzes se apagam e tentamos acomodar uma expectativa na poltrona. Dirigimos nosso olhar para a tela e aguardamos algo que ajuste nossa corporalidade. Assim que a exibição do filme começa nos tornamos visão e audição. O filme nos rodeia. É importante ficar em silêncio. Mas que tipo de quietude é essa? É uma experiência de imersão corporal e de se dedicar completamente a um único evento, em um local específico durante um período de tempo. Portanto, sugere um gesto de interrupção. Preparamo-nos para uma atitude de observação cuidadosa.

 

Estabelecemos uma relação espacial com o cinema; é necessário estar presente para uma experiência virtual. Também constituímos uma síntese temporal. A sequência de imagens pede um fio cuja elaboração participamos. Uma investigação exemplar da temporalidade, o cinema brinca com possibilidades e subverte o tempo objetivo. Anos ou séculos passam rapidamente, ou o que seria um minuto pode durar longos períodos, indicando uma flexibilidade que também compreendemos, porque é assim que vivemos o espaço e o tempo. Organizamo-nos corporalmente para esta experiência. Essa postura, portanto, sinaliza alguma disponibilidade para ouvir e uma suspensão temporária de certezas. 

 

Na frente da tela, nos expomos a algo que pode nos surpreender. Visitamos outro mundo e compartilhamos com os outros uma experiência que é elaborada em nosso corpo. O suspense, o terror, a alegria, os quadrinhos, habitam todo o ambiente. Win Wenders, produtor, dramaturgo e cineasta do Novo Cinema Alemão,  comenta a possibilidade de sair da sala para evitar o impacto de uma cena indesejada: "Acho que muitas das imagens, uma vez que estão em você, continuam vivendo em você". O que percebemos não pode ser "apagado", não é possível "desver". Não temos todo o controle sobre o nosso envolvimento, exceto a possibilidade de não vivê-lo. Não é necessariamente a história que nos mobiliza, mas o efeito total dessa experiência. Essa forma de passividade diante do filme indica um tipo diferente de movimento, uma permissão para ser conduzido pelo filme.

A sequência de imagens e sons sugere apenas uma experiência que é completada por nossa participação. Como Merleau-Ponty indica, a percepção não é eficaz pela adição de elementos: "Percebo de maneira indivisa através do meu ser total, apreendo uma estrutura da coisa, uma maneira de existir que fala simultaneamente a todos os meus sentidos". Se, no cinema, é o olhar que concentra nossa corporalidade, ao mesmo tempo ele nos revela que uma imagem pode sugerir superfície, volume, cheiro e temperatura juntos. O cinema fala ao nosso corpo, que é para nós a medida do que vemos.

 

Ainda segundo as palavras de Merleau-Ponty, “Cólera, vergonha, ódio ou amor não são fatos psíquicos ocultos no mais profundo da consciência de outrem; são tipos de comportamento ou estilos de conduta, visíveis pelo lado de fora.” Percebemos amor, alegria, decepção e ódio, não necessariamente pelo conteúdo dos discursos, mas pelos próprios gestos e expressões, no ritmo das imagens e sons. O privilégio de assistir a um filme não é, portanto, abandono do eu, mas uma permissão para a visita de possibilidades apenas anunciadas na tela. O cinema pede, assim, uma forma discreta de participação que é esquecida diante do espetáculo.

Olhar interrogativo

 

Nós vamos ao cinema para ver. Nenhuma definição ou análise pode substituir a experiência perceptiva e direta com a obra, pois esta seria então já outra. "Ver" pressupõe uma ação, mas não completamente deliberada. Com os olhos abertos, já estamos vendo e participando do mundo como seres visuais, videntes e visíveis. Mas também podemos orientar o olhar, ajustar a perspectiva, o ritmo, o foco ou até desviar o olhar.

 

“Porque cremos que a visão se faz em nós pelo fora e, simultaneamente, se faz de nós para fora, olhar é, ao mesmo tempo, sair de si e trazer o mundo para dentro de si.”, como afirma a filósofa brasileira Marilena  Chauí. O olhar interroga, sente, viaja, toca à distância e extrapola as fronteiras espaciais do corpo. Essa maneira de interrogar o mundo também tem uma certa expectativa, uma maneira de ir ao encontro de uma provocação: há algo para ser observado.

Merleau-Ponty diz que, na pintura, encontramos objetos “que não se insinuam ao olhar como objetos bem conhecidos, mas, ao contrário, detêm o olhar, colocam-lhe questões, comunicam-lhe estranhamente sua substância secreta, o próprio modo de sua materialidade e, por assim dizer, ‘sangram’ diante de nós.”  Poderíamos dizer que o cinema tem o mesmo poder, e assim nos expomos à possibilidade de uma maneira diferente de ver o mundo e, principalmente, de imaginá-lo.

 

Participamos de um jogo de mostrar e esconder, elaborado pelo que compõe ou não as cenas, pelas escolhas da direção, de acordo com o cineasta Win Wenders: “O que está fora é quase mais importante do que o que está dentro. (...) O verdadeiro ato de enquadrar consiste em excluir algo”. A perspectiva que recebemos é ampliada por nossa participação, e nosso olhar revela a estranha relação entre o visível e o invisível. Esse campo perceptivo sugere novas articulações que não são limitadas ao que vemos, duplo exercício de percepção e imaginação.

Imagens poéticas

 

Para investigar os mistérios do movimento humano, o esporte e a dança estavam entre as primeiras imagens analisadas pela Educação Física e Esporte, atendendo a interesses científicos. É o começo do cinema também. Hoje, o poder das imagens em movimento coloca o cinema entre as linguagens mais populares do mundo. Por imagens, apresenta narrativas renovadas, constantemente atualizadas na imaginação humana. Nesse sentido, há pouca diferença entre a emoção causada pelo cinema, o choque sentido pela leitura de um bom livro ou a comoção vivida na narrativa de um jogo envolvente.

 

A intensa provocação diante das imagens convida afinidades e sintonizações. Gaston Bachelard traz um conceito de imagens poéticas que emerge de sua "ontologia poética" e fala sobre imagens primordiais que promovem empatia, compreensão, emoção, choque e comoção. Antes deste poeta, empiristas e realistas reduziram o papel da imagem a uma mera reprodução dos dados da percepção. A imagem foi entendida como a expressão sensível de algo que não era um em si, apenas uma representação da realidade.

A partir dos estudos de Bachelard, a imagem não está subordinada à condição ou semelhança com o objeto representado, mas com sua realidade específica. Torna-se a origem de sua própria origem. Assim, a imagem "se torna criativa e produz significado". Em sua fenomenologia da imagem, o filósofo e poeta francês a coloca "como um ato e evento singular e efêmero", mas de maior relevância para a própria ciência, pois inspira suas curiosidades e indagações. Bachelard investiga o repertório humano na literatura, buscando as imagens primordiais. A partir desse mapeamento, temos um ser humano que renova imagens que lhe permitem ordenar o caos e trabalhar com a consciência de sua finitude.

 

Os mitos constelam essas imagens elementares e essenciais, decorrentes das primeiras relações do homem com a natureza. As imagens poéticas são assim articuladas nas narrativas mitológicas e visam a geração de significado em vez de uma explicação do mundo. A principal função dos mitos, narrativas e repertório de imagens parece ser a articulação de fatores opostos, os inúmeros paradoxos e angústias humanas em face do tempo e da morte. Apresenta as arbitrariedades da vida, “Não há necessidade de ter vivido os sofrimentos do poeta para aproveitar a felicidade da fala oferecida pelo poeta - uma felicidade que domina a própria tragédia.”. As imagens atuam no corpo, são vividas. Algumas cenas nos deixam sem fôlego, ficamos empolgados com os desafios esportivos e seus gestos grandiosos e belos. Algumas imagens encontram nossos desejos internos e atualizam imagens e sentimentos esquecidos.

 

Nesse sentido, o cinema é especialmente reconhecido por recriar mitos e imagens mitológicas clássicas: bem e mal, a jornada do herói, a busca de significado universal. Com complexidade inquestionável, as imagens poéticas têm um caráter atemporal, atualizado em nosso corpo. E, segundo afirma Bachelard: "A fenomenologia da imaginação exige que as imagens sejam vividas diretamente.". Assim, viver as imagens do cinema e os eventos repentinos da vida é uma questão de maior importância, pois que confere significados. Como nos esportes, o cinema revigora o mundo vivido.

Considerações finais

 

A interseção de cinema e esporte é excelente para explorar a experiência perceptiva humana e aprender sobre diferentes maneiras de interagir com o mundo por imagens e imaginação. Esporte e cinema como produtos e produtores culturais, retratam imagens poéticas atualizando questões humanas: vida e morte, luz e trevas, amor e ódio, bem e mal, vencendo e perdendo, e assim por diante. A fenomenologia da imaginação poética nos permite explorar o poder das imagens na constituição humana. O que esperamos de um filme?

 

É possível argumentar que seduz nossa imaginação e, ademais, expõe nossa condição sensível. Trata-se de fazer falar a dor, o amor, a alegria, os sonhos, o absurdo e, da maneira mais diferente, revelar nossa humanidade. O que podemos aprender com o cinema, além de possíveis conteúdos, talvez seja a própria experiência de nos deixar habitar por outras lógicas, ritmos, diferentes éticas e possibilidades estéticas. O cinema pode nos ajudar a pensar nosso corpo, mas antes de tudo nos convida a experimentá-lo.

Para saber mais      

BACHELARD, G. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

CARRUAGENS de Fogo (Chariots of Fire). Direção: Hugh Hudson.  Reino Unido: Warner Bros, The Ladd Company, 20th Century Fox, 1981 (123 min).

CHAUÍ, M. Janela da alma, espelho do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

GARRINCHA, Alegria do Povo. Direção: Joaquim Pedro de Andrade. Documentário média-metragem, Brasil, 1962 (60 min).

INVICTUS. Direção: Clint Eastwood. Estados Unidos e África do Sul: Mace Neufeld Productions, Malpaso Productions, Revelations Entertainment, Spyglass Entertainment, 2009 (134 min).

MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

______. Conversas, 1948. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

______. O cinema e a nova psicologia. In: XAVIER, Ismail (Org). A experiência do cinema. Antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme, 1983, p.101-118.

MILLION Dollar Baby. Direção: Clint Eastwood. Estados Unidos: Warner Brothers, Lakeshore Entertainment, Malpaso Productions, Albert S. Ruddy Productions, 2004 (132 min).

OLYMPIA. Direção: Leni Riefenstahl. Documentário. Alemanha, 1938 (121 min).

RAGING Bull. Direção: Martin Scorsese. Estados Unidos: United Artists, 1980 (129 min).

SAURA, S. C.; ZIMMERMANN, A.C. (Org.). Cinema e Corpo. São Paulo: Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária/USP/ Editora Laços, 2016.

WENDERS, W. Janela da Alma: depoimento. Fragmento não incluído no documentário. Direção: João Jardim. Produção: João Jardim; Walter Carvalho; Tambellini; Cilmara Santos; Mayanna von Ledebur. Ravina Filmes; Longa-metragem/Sonoro/Não ficção. 35mm, COR, 64min. Brasil/França. 73 min. Rio de Janeiro, 2001.Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=mFIHnl4rmd0>. Acesso em: 04 abr. 2012. 

As autoras

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Ana Cristina Zimmermann, Atualmente é professora na Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo. Orientadora no Programa de Pós-graduação em Educação Física e Esporte EEFE/USP na area de "Estudos Socioculturais e Comportamentais da Educação Física e Esporte", no Programa de Pós-graduação em Educação FEUSP, na area de "Cultura, Filosofia e História da Educação. 

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Soraia Chung Saura é Professora Doutora no Departamento de Pedagogia do Movimento do Corpo Humano da Escola de Educação Física e Esportes da Universidade de São Paulo. Coordena o Projeto Cinema e Corpo (EEFE, CINUSP e Pro Reitoria de Cultura e Extensão da USP), o Grupo de Estudos PULA e o Centro de Estudos Socioculturais (CESC- EEFE-USP).

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